quarta-feira, 28 de maio de 2008

madrid oculto

Há um poema de Emily Dickinson que começa com "I held a Jewel in my fingers". Vez ou outra penso nele, na sensação terrível que ele martela em nossa alma no verso seguinte: "And went to sleep". Pensei nele ao fechar este livro sobre Madrid, que comprei no último dia livre na cidade, em uma calle bem próxima a agitada Plaza Mayor, vestida para um dia cinzento e feio. Helga e Nana estavam lá gloriosas me ajudando a decidir-me se comprava ou não o livro. Li já aqui em Santa Maria, em dois dias de sonho, ensolarados e belos. Mas assim como no poema de Dickinson cedo ou tarde deitamos e dormimos. Acontece que as delícias de Madrid são tantas e tão evidentes que ao acordarmos e não nos encontrarmos no meio daquele burburinho característico e da agitação típica de lá sentimos um friúme por dentro. É a vida, diria dueña Nana, senhora das frases definitivas. Temos de aguentar o aperto no peito e seguir. "Madrid Oculto" é uma espécie de guia turístico sofisticado, onde fatos curiosos sobre a cidade e sua história são apresentados com calma, sem a concisão e o jeito telegráfico de um guia de viagens comum. Lembra também um almanaque brasuca, com várias notas curtas sobre fatos curiosos da cidade, como o nome das ruas, a origem de certos termos do dia a dia. Descobri por exemplo que Mesoneros Romanos, a rua do hotel onde ficamos hospedados, não é uma homenagem a algum passado remoto de influência romana, mas sim o antropônimo de um sujeito que escreveu muito sobre a cidade e inclusive lutou para manter muitos de seus prédios históricos conservados (como a casa de Calderón de la Barca ou a de Cervantes, por exemplo). Há muitas fotos e ilustrações, bem como mapas detalhados das zonas mais interessantes de uma cidade naturalmente interessante. Os autores, pai e filho, são os idealizadores e apresentadores de um programa de rádio de relativo sucesso onde amedotas históricas e curiosidades bobas da cidade são contadas (e ao mesmo tempo também recolhidas da fonte mais fundamental, a memória dos ouvintes habitantes da cidade). Peter Besas também foi editor de guias de viagem famosos, como o Fodor e o Frommer, portanto ele entende um tanto de como convencer um sujeito a seguir suas sugestões. O livro prescinde da cidade para ser interessante, mas utilizá-lo para fazer alguns caminhos por lá deve ser divertido. O livro é bem recente (a primeira edição é de outubro de 2007) e portanto bastante atualizado. Não espere encontrar aqui sugestões de restaurantes, bares, hotéis, mas sim apenas de lugares (calles, passagens, edifícios, parques) que certamente encantam a memória afetiva do leitor.
Madrid Oculto, una guía práctica, Marco Besas e Peter Besas, Ediciones La Librería, 3a. edição (2008) brochura 14x21cm, 364 pág., ISBN: 978-84-96470-76-7

domingo, 25 de maio de 2008

sabotaje olímpico

Este livro de Manuel Vázquez Montalbán foi publicado aproximadamente um ano depois dos jogos olímpicos de Barcelona. É uma ode crítica a toda organização dos jogos e do conceito mesmo de competição esportiva onde os interesses políticos e econômicos são os únicos que de fato estão em jogo. O livro é uma alegora livre sobre os vários personagens envolvidos nos jogos: o fanquista de primeira hora e presidente eterno do comitê olímpico internacional, Juan Samaranch; Ben Jonson, o recordista dopado do cem metros rasos; o rei Juan Carlos e seu manual do bom reinado debaixo do braço; Felipe González e os muitos políticos madrileños e catalães envolvidos nos jogos (como pano de fundo eleitoral no horizonte); os ricos empreendedores catalães como sempre contando o rico dinheirinho ganho com os projetos imobiliários; os arquitetos e arautos da modernidade que olham para suas obras como a rainha má de Branca de Neve olhava para seu espelho falante; os idealizadores do projeto que mitificaram a própria idéia do que uma Catalunya poderia ter sido ou ainda ser; Bush pai e sua guerra do golfo, sem saber se bombardeia e invade Bagdah ou Barcelona, afinal é tudo a mesma coisa para um caubói; o papa João Paulo II e suas amigas polonesas arremessadoras de dardo, prontas para fecundar todos os católicos deste mundo e aumentar a prole de fiéis. Para nós brasileiros que estamos as voltas com um bando de aventureiros espertalhões que vão organizar a copa do mundo de futebol em 2010 e ainda pretendem de lambuja ganhar a organização dos jogos olímpicos de 2016 é mesmo um livro curioso de se ler. Onde há uma cortina de fumaça adequada, seja ela religiosa, esportiva, afetiva, emocional, festiva, sempre vai existir um canalha de plantão pronto para roubar uns dinheiros, não importa quanto explícito o roubo possa ser executado no final. Talvez aqueles jogos teriam sido uma miragem, inventada para iludir a população mundial de suas mazelas. Talvez tenha sido sempre assim desde aqueles dias ensolarados na grécia, onde um punhado de rapazes nus, lambuzados de azeite de oliva, corriam, pulavam e lançavam para apenas ganhar ramos verdes entrelaçados como prêmio.
Sabotaje Olímpico, Manuel Vázquez Montalbán, editorial Planeta, 1a. edição (2005) brochura 15,5x23,5cm, 173 pág., ISBN: 978-84-08-05895-3

domingo, 18 de maio de 2008

sonámbulo y otras historias

Este comics (em português do Brasil, hehehehehe), mangá, ou enfim novela gráfica, como se registra na Espanha, é de um americano de seus trinta e poucos anos chamado Adrian Tomine. Ele publica uma série de histórias, chamada sempre de "Optic Nerve", em jornais e em revistas americanas como "The New Yorker", "Time" e "Rolling Stone". Em livro, ou melhor dizendo, neste formato de livro, algumas das muitas histórias de "Optic Nerve" foram compiladas já várias vezes, o que acabou por grangear muito sucesso e respeito para seu autor. Eu conhecia o traço marcante dele por conta de um conjunto de cartões postais que comprei anos atrás. Não havia muita informação no cartão, mas as imagens como se defendiam sozinhas da minha curiosidade. Mandei vários destes cartões para os amigos, sempre que um sentimento ou outro se aproximava da minha leitura da ilustração. Passeando por uma loja de comics em Madrid com dueña Nana enquanto dueña Helga se divertia na calcografia nacional achei dois volumes (este Sonánbulo resenho agora, mas meu favorito, Rubia de Verano, vou resenhar apenas mais tarde, pois a caixa onde ele está ainda não chegou dos correios). O que dizer? Sou um entusiasta deste tipo de linguagem. Lembram um tanto os contos curtos de Raymond Carver por exemplo, ou mais precisamente ainda, o filme baseado nestes contos, "Short Cuts", dirigido por Robert Altman. As histórias curtas envolvem pessoas comuns, um tanto marginalizadas socialmente em sua maioria, longe do estereótipo que usualmente atribuímos aos americanos (como sintetizar a psiquê de 300 milhões de indivíduos afinal de contas?). Gosto desta capacidade de registrar uma reflexão social profunda e sutil usando ilustrações (o meu guru nesta assunto é o Angeli, para mim o mais conciso, cortante e fundamental de todos os grandes ilustradores brasileiros). Recomendo este comics para todos aqueles que já tenham passado pelos primeiros aborrecimentos desta vida mas que não perderam a capacidade de se surpreender com tudo o que é humano (as vezes demasiadamente humano, já disse alguém).
"Sonámbulo y otras historias", Adrian Tomine, tradução de Robert Lubarsky, ediciones La Cúpula, 1a. edição (2006) brochura 16.5x24cm, 106 pág. ISBN:84-7833-691-5

quinta-feira, 15 de maio de 2008

la almudena y san isidro

Este é um pequeno livrinho que conta um tanto sobre os santos padroeiros de Madrid. Comprei junto com "Madrid Oculto", um belo guia de curiosidades sobre Madrid que pretendo resenhar aqui depois. O que dizer deste livrinho? Ele tem praticamente tudo o que se sabe sobre eles, que entraram para o rol dos santos católicos no início do século XVII. Se não vale uma missa ao menos ficando sabendo das várias passagens míticas dos dois. A Virgem de Almudena apareceu, claro, durante a reconquista católica das terras da península ibérica dominadas pelos mouros, ainda no século XI. Originalmente uma imagem dela teria sido escondida em uma muralha que somente após 700 anos de dominação árabe é retomada pelos cristãos. Fragmentos desta muralha podem ser encontrados e vistos ainda em vários pontos de Madrid, perto do atual Palácio Real de Madrid. San Isidro por sua vez foi um sujeito de carne e osso. Vivia como pastor e curiosamente tanto ele, quanto sua mulher e seu filho foram canonizados, o que os torna (a autora afirma isto) a única família nuclear canonizada. O sujeito tem aqueles atributos diferenciais que o distinguem: é muito mais alto que os demais da região, viveu um tempo extenso, realizou uma miríade de milagres. O livrinho tem uma breve bibliografia e serve de guia para alcançarmos os lugares de Madrid onde eles são reverenciados. Há muitas imprecisões e a seqüência de fatos históricos é obviamente vaga (a autora sabe e registra isto), mas nas questões de fé não cabe mesmo muita argumentação. É isto.
La Almudena y San Isidro, patronos de Madrid, Maria Isabel Gea Ortigas, Ediciones La Librería, 3a. edição (2003) brochura 10x14.5cm, 61 pág., ISBN: 978-84-89411-33-6

terça-feira, 13 de maio de 2008

roldán, ni vivo ni muerto

Este livro de Manuel Vázquez Montalbán foi publicado originalmente de forma seriada no jornal espanhol El País em meados de 1994. É fantásticamente inspirado em Luis Roldán Ibáñez, um político espanhol ligado ao PSOE e que foi durante um certo tempo diretor geral da "Guardia Civil Espanhola", o equivalente de nossa Polícia Federal. Ele foi conhecido por seu desempenho na luta contra o grupo terrorista ETA nos anos 1980 e também por um famoso escândalo de corrupção já no início dos anos 1990. No final do governo socialista de Felipe González (1982-1996) várias membros ativos e importantes do governo sofreram acusações por enriquecimento ilícito e mal uso de verbas públicas. Aparentemente Roldán usava as verbas secretas destinadas a luta contra o terrorismo (o que envolvia o não controle público de seu uso). Feita a denúncia contra Roldán, quando já havia provas irrefutáveis dos desvios praticados, este não comparece a uma audiência do julgamento e desaparece. Por cerca de três anos seu destino era desconhecido até que a Interpol o localiza na Tailândia e o entrega às autoridades espanholas. Aqui há uma coincidência com as coisas do Brasil, pois foi para lá que o glorioso testa de ferro do ex-presidente Collor refugiou-se. Cabe lembrar que nosso PC Farias foi preso, trazido ao Brasil mas logo depois foi convenientemente assassinado. Já Roldán amargou uma pena de 31 anos de prisão, foi multado e devolveu boa parte do dinheiro desviado, sua família e testas de ferro foram igualmente presos e condenados, sem perdão (e sem queima de arquivo, claro). Aliás ele continua preso até hoje. Manuel Vázquez Montalbán usa esta mirabolante história para fazer uma análise ficcional da história de Roldán e dos estertores do governo socialista espanhol da época. Até a publicação do último capítulo na forma seriada e mesmo quando eles foram publicados na forma de livro o paradeiro de Roldán ainda era desconhecido. Montalbán cria então uma fábula onde dezenas de sósias do sujeito são recrutados e espalhados pela Espanha (e até pelo oriente médio). Para os personagens o objetivo deste subterfúgio é confundir a opinião pública enquanto outros corruptos em escalões políticos mais altos, talvez mais experientes, apagassem as marcas de seus próprios desvios. Realidade e fucção se misturam, personalidades históricas conversam com o investigador e seu ajudante (e também com o leitor). Biscuter e Carvalho trilham pistas diferentes, caem em armadilhas mas ao final se encontram nos subterrâneos (talvez melhor dizendo, cloacas morais e éticas, mas subterrâneas) da plaza de Sant Jaume, no centro de Barcelona. Diferentes políticos, grupos econômicos, jornalistas, serviços secretos dos mais variados naipes têm interesse em que Roldán siga desaparecido, longe do olhar e da curiosidade do público. O fino é mais ou menos frouxo. Não é um livro espetacular, mas aprendi um tanto mais sobre a cultura política espanhola e sobre o estilo irônico de Montalbán. Nem tudo o que ele escreve pode ser tomado literalmente a sério. Há mais ironia neste sujeito que eu sabia até agora. Ainda tenho um par de livros da série Carvalho para ler e resenhar. Veremos. Há outra coincidência neste livro, pois ele faz-me lembrar de alguns gênios da raça brasucas que teimam em defender certos gastos públicos, como os generosos aportes financeiros utilizados pelo gabinete da atual presidência da república. Para estes curiosos vestais da "res pública" nosso atual guia genial deve ser blindado, pois sua vida é um segredo de estado secretíssimo e inviolável, mas esta é apenas mais uma triste história deste miserável Brasil acossado internamente por bárbaros.
Roldán, ni vivo ni muerto, Manuel Vázquez Montalbán, editorial Planeta, 1a. edi ção (1994) brochura 15x23cm, 173 pág., ISBN: 974-84-08-05957-8

segunda-feira, 12 de maio de 2008

operação shylock

Escrever sobre Philip Roth é sempre uma experiência gratificante. Um sujeito que consegue de forma tão direta, mas elegante, atingir nosso estômago e nosso cérebro simultaneamente é sempre algo de se admirar. Este operação Shylock é mesmo um livro bom. Comprei em uma bienal do livro paulista, uma edição bela com guardas e sobrecapa de plástico muito bonita, mas só agora coube-me lê-lo. Publicado quando o autor já estava com 60 anos, senhor de todas as técnicas literárias e com o corpo repleto de experiências limite, eis que Roth resolve discutir um tanto mais profundamente o tema mais sagrado de todos para um judeu: a existência em si do estado de Israel. Roth não poupa substantivos em sua vibrante e vertiginosa análise do judaísmo e do sionismo. Desta feita ele usa a figura do duplo, do doppleganger, símile que sempre foi muito usado para fins literários. Roth, um escritor tranquilo após passar pelas confusões de um ataque cardíaco, do diagnóstico de um possível câncer, de uma separação difícil, descobre que um outro Roth está em Israel defendendo uma nova diáspora judaica, uma diáspora as avessas, de forma que todos os judeus europeus que emigraram para a palestina após a segunda grande guerra deveriam voltar para seus países de origem (alemanha, aústria, polônia, ucrânica, rússia, etc e tal). Com este mote e utilizando uma técnica onde a própria obra parece ganhar autonomia física em relação ao autor ele discute à exaustão seu leque de temas habituais: sexo, câncer, judaísmo, fama, psicanálise. Ele explicita de um jeito radical sua técnica narrativa e isto em si já é um truque literário difícil de ser emulado. Este ano é mesmo o ano da metalinguagem e dos livros onde a metalinguagem é norma (Reparação, Patrimônio, Mentiras, Montalbán). Há trechos do livros que são factuais: uma conversa com um escritor israelense e a descrição do julgamento de um antigo colaborador dos nazistas capturado nos Estados Unidos. As versões se cruzam, como tiros em um território ocupado. A memória do homens se confunde com os fatos. No livro Roth torna-se progressivamente mais paranóico quando o tema chega na definição do que é mesmo terrorismo de estado e na sutil diferença entre o sionismo e o semitismo. O jogo de espelhos entre autor e personagens segue até o final. Mais que polêmico o livro é profético, pois escrito no início dos anos 1990 suas reflexões não poderiam ser mais certeiras hoje, quando vemos a situação da Palestina ainda pior e mais incerta do que naquela época. Não há mesmo remissão possível, parece dizer-nos Roth, para quem tem mantêm, permanentemente, o dedo no gatilho de uma Uzi. A condição judaica e mesmo o destino possível dos judeus e do judaísmo devem a Roth uma seminal contribuição. A curta nota ao leitor do final (uma espécie de capítulo extra) embaralha uma vez mais o jogo e deixa ao leitor a responsabilidade por uma cota honesta de reflexão. A frase que mais me marcou é dura, mas fundamental para um aprendiz de escritor: "Você não é um escritor antes de enfrentar seus fantasmas mais entranhados". Vale.
"Operação Shylock, uma confissão", Philip Roth, tradução de Marcos Santarrita, editora Companhia das Letras, 1a. edição (1994) brochura 14x21cm, 355 pág. ISBN:85-7164-372-5

sábado, 3 de maio de 2008

mentiras

Na última vez que fui a Porto Alegre achei este "Mentiras" em um balaio de 3 reais. Comprei e comecei a ler ainda no ônibus de volta, mas eis que a partir do meio o livro havia uma infinidade de erros de edição: cadernos trocados, páginas faltando, caracteres ilegíveis. O dinheiro explica quase sempre quase tudo. Consegui trocar o livro (o livreiro é meu amigo, mas acho que ele faria o mesmo com qualquer cliente lesado). Ainda bem que fiz a troca, pois a segunda metade do livro é fantástica. "Mentiras" foi escrito mais ou menos na época do livro posterior que li recentemente de Roth (Patrimônio). A primeira metade é feita de "sketches" ou cenas curtas, descrevendo aqueles momentos onde amantes ficam na cama conversando bobagens relacionadas ou não ao sexo e a relação de ambos. Parece algo como um catálogo de conversas pós-trepadas. É bem esquemático mais curioso de se ler. Os temas são os de sempre: sexo, adultério, literatura, judaísmo, psicologia, casamentos, intelectualismo, doenças graves. Philip Roth não é nunca um autor sutil ou discreto afinal de contas. "Mentiras" é um belo livro, cabe dizer, assim como não é demais escrever que Roth é um excelente escritor. Uma das frases favoritas que compilei neste livro diz que na vida as ironias nunca acabam. Grande verdade. Na segunda parte do livro o esquema das cenas curtas muda um tanto. O câncer surge como sempre nos livros dele, pois é uma ferramenta de trabalho para Roth. A vida das pessoas sofisticadas que ele descreve se torna ainda mais rica e complexa. No final um par de torpedos metalinguísticos explicam o livro para o leitor. De certa forma o final de "Reparação", que li recentemente e resenhei aqui, já está contido neste "Mentiras", escrito por Roth dez anos antes (mas isto não é exatamente um demérito para Ian MacEwan). No final o emulador de todo efebo: Homero e sua Odisséia, pairam sobre tudo. Grande livro.
"Mentiras", Philip Roth, tradução de Sérgio Flaksman, editora Siciliano, 1a. edição (1991) brochura 14x21cm, 183pág. ISBN:85-267-0324-2

sexta-feira, 2 de maio de 2008

filipe de espanha

Esta é uma biografia bastante detalhada e até certo ponto bastante favorável a Filipe II, rei de Espanha na segunda metade do século XVI. Filipe II foi filho e herdeiro de Carlos V, imperador do sacro império romano germânico. Teve uma vida longa para os padrões de seu tempo (71 anos) e um reinado igualmente extenso (quase 50 anos). A Espanha de sua época foi um império de até então inigualável extensão territorial, embora muito fragmentário e sem jamais ter alcançado um grau aceitável de coesão adminstrativa. Os grandes desastres usualmente atribuídos a Filipe (derrota da grande armada, isolamento frente a Europa protestante, bancarrotas financeiras, apoio a inquisição) aconteceram majoritariamente quando ele já era bem velho e estava bastante alquebrado. Sobreviveu a maioria de seus filhos e a todas as esposas (como depois disse Flaubert de si mesmo: seu coração se transformou em uma necrópole). A biografia acompanha cronologicamente os passos mais importantes de sua vida e é francamente favorável até a quarta parte final, onde enfim o autor abondona o velhinho a sua má sorte histórica e a seus detratores usuais (anglicanos, católicos moderados, protestantes, muçulmanos). Não há muito o que se fazer com uma reputação já consolidada afinal de contas. Apesar de ser um livro realmente extenso (mais de 500 páginas se incluirmos a excelente bibliografia, as notas e o índice bastante detalhado) é de fato muito fácil de se ler e cheio de boas informações sobre um período conturbado da história européia e espanhola. O autor é um especialista, mas escreve sem paixão de uma forma muito agradável. Aprendi bastante e se cabe alguma indicação das razões básicas para a lenta decadência espanhola a partir de então, posso a meu juízo listar: (i) o fato da Espanha estar em guerra em algum lugar praticamente o tempo todo de seu reinado; (ii) o fato da religião realmente envenenar mesmo tudo; (iii) o fato do pragmatismo da igreja católica frente a realidade do protestantismo ser muito mais inteligente que a confrontação dedicada dos espanhóis através da contra-reforma; (iv) o fato de seus vários casamentos, sempre arranjados em função de complexas intenções políticas, serem acertados na idéia mas mal admistrados; (v) o fato de não ter movido a capital de seu império para um ponto mais próximo do litoral, como Lisboa por exemplo, quando isto ainda era politicamente possível. Mas chega de achismos históricos bestas. Estou seguro que mesmo para quem já conhece algo da história espanhola este é um belo livro para se ler. Bom divertimento.
"Filipe da Espanha", Henry Kanen, tradução de Vera Mello Joscelyne, editora Record, 1a. edição (2003) brochura 16x23cm, 544pág. ISBN: 978-85-01-0521901