segunda-feira, 27 de outubro de 2008

santa maria do circo

Ano passado eu havia lido "O último leitor" do mexicano David Toscana quase de uma sentada só. Foi uma leitura bastante agradável. A imaginação deste sujeito é mesmo poderosa. O que ele faz não pode ser classificado como realismo mágico, o que seria um rótulo fácil, apesar de gasto, a ser aplicado a um escritor latinoamericano jovem. Andei procurando críticas de e sobre Toscana e ele prefere cunhar seu próprio rótulo chamado-o de "realismo desvairado". Segundo ele o leitor médio de hoje sofre um "mal do real", pois existe tanta informação disponível e estas são reeditadas tão rapidamente que este leitor médio acaba acreditando entender como funciona a realidade, mas na verdade opera em um mundo tão falso como aquele imaginado por Don Quixote por exemplo. Bom. Neste "Santa Maria do Circo" (que é uma piada pronta para nossa Santa Maria gáucha, mas esta é outra história) somos apresentados a um grupo singular de artistas que vaga por uma região não nominada do México natal do autor. O grupo acabou de ser formado pela divisão de um circo maior e acaba chegando a uma cidade abandonada. Eles resolvem se estabelecer por ali e sorteiam entre si cargos e ocupações aleatórios: um padre, uma jornalista, um militar, um camponês, um escravo, uma puta, uma médica, entre outros (até um diabo se revela no fim.) Numa sucessão de episódios observamos como cada um reage a sua sorte/azar/fortuna. O lado menos conhecido de cada um aflora e conflitos entre eles se sucedem. Várias vozes, vários narradores, contam suas histórias e também um tanto da história do México. O livro parece engraçado, mas é sombrio do começo ao fim. Gostei de uma técnica curiosa: os capítulos se sucedem de forma que a ação, o enredo de cada um, começe mais ou menos no meio do que foi descrito nos capítulos anteriores. Claro, o irrealismo assumido de tudo que se conta nos obriga a pensar como operamos nestes tempos sombrios em que vivemos, onde ninguém está fora do alcance de pequenas tragédias, surpresas desagradáveis, manipulações em escala global, bobagens terríveis repetidas todos os dias por atores de todas as classes sociais, de todas as regiões, de todos os credos, de todas as etnias. Já que a história oficial é feita pela repetição de versões; que a vida nada mais é do que contar uma história e se acreditar nela; que os arranjos pessoais se fazem na maior parte das vezes em um misto de hipocrisia e oportunismo, é possível se falar em esperança, em futuro, em evolução por exemplo? No Brasil especialmente, onde o governo de plantão opera como se toda a população fosse perfeitamente manipulável à sua cota de mentiras diárias, este livro serve como um alerta. Este é mesmo o tipo de livro, do tipo de autor, que se faz importante nestes tempos.
"Santa Maria do circo", David Toscana, tradução de Maria Alzira Brum Lemos, , editora Casa da Palavra, 1a. edição (2006) ISBN: 85-7734-00-66

sábado, 25 de outubro de 2008

a eternidade e o desejo

Este romance de Inês Pedrosa inclui várias citações de sermões do padre Antônio Vieira. São tantos e tão extensos que confesso parei de lê-los depois de um terço do romance propriamente dito. Depois de terminado o romance voltei às páginas iniciais e tentei ler apenas as citações isoladamente, mas novamente abandonei o projeto. Não sei dizer se a leitura dos trechos (sempre em negrito) ajudam ou atrapalham. Para mim pareciam escolhos abandonados no meio do rio de palavras do romance. Talvez seja um truque literário, uma experiência qualquer. Paciência. Um dia destes vou direto à fonte: tenho dois volumes robustos com os sermões completos de Vieira e em uma época mais cálida me concentrarei o suficiente para lê-los. Já sobre o romance posso falar um tanto. Ele é dividido em duas partes mais ou menos simétricas. Uma moça portuguesa, professora de literatura em uma universidade lisboeta, teve uma experiência amorosa limite. Primeiro apaixonou-se por um forasteiro durante um congresso acadêmico (o sujeito era um professor brasileiro). Nada absurdo. Um tempo depois decide visitá-lo na Bahia sem tê-lo avisado previamente, mas chega a encontrá-lo justamente no meio de uma discussão boba de bar com um desconhecido e acaba levando um tiro que lhe tira a visão (seu amante morre sem ao menos ter entendido como ela apareceu à sua frente naquele dia.) Anos depois ela novamente em um impulso decide voltar à Bahia, um tanto para purgar este amor perdido, um tanto para descobrir mais sobre a vida e os textos do padre Antônio Vieira (que era o objeto de pesquisa de ambos afinal de contas.) Nesta viagem ela se faz acompanhar por um amigo que quer tornar-se mais que amigo, sendo continuamente desestimulado por ela. De qualquer forma ele a acompanha (um misto de sacrifício pessoal e tentativa de tornar-se credor de seus carinhos.) Em terras brasileiras ela descobre mais que detalhes da vida do padre Vieira: descobre o sincretismo religioso, o candomblé, outras formas de amor, outras formas de sedução, outras formas de viver. Esqueçe mesmo que é cega e tem lá suas limitações físicas. O amor é mesmo primo da morte e da morte vencedor (sempre lembro do Drummond.) Seguindo a trilha de Vieira por Salvador e depois por Alcântara (no Maranhão) ela se descobre uma pessoa bem diferente do que era em Portugal. Progressivamente se afasta da terra natal, dos contatos acadêmicos, da vida universitária (curioso como li livros onde a vida acadêmica em universidades servem de plano de fundo para algum enredo.) Achei trivial demais a idéia piegas de ter um filho brasileiro no final. Mas como demonstrar o amor bruto ao Brasil que emana do livro? Os textos do Vieira ajudam ou atrapalham? Nunca vou saber, mas é boa escritora esta portuguesa. Agora é hora de voltar à Espanha, voltar aos últimos livros de Montalbán que trouxe na viagem, completar o ciclo Carvalho. Veremos.
A eternidade e o desejo, Inês Pedrosa, editora Alfaguara, 1a. edição (2008), brochura 15x23cm, 177 págs. ISBN: 978-85-60281-473

domingo, 19 de outubro de 2008

sábado

Sábado foi publicado em 2005 e descreve pouco mais de 20 horas de um sujeito, ou melhor, de uma família inglesa contemporânea. Em uma comparação ligeira poderíamos pensar em Ulysses, de James Joyce, no Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf ou nos Ratos, de Dyonélio Machado. Há ecos do 11 de setembro neste livro, ou seja, a idéia do terrorismo e do poder do estado pairam sobre o enredo e os personagens. Mas McEwan nunca é pedestre e nos oferece uma história onde podemos refletir um tanto sobre o quê é mesmo viver com medo e se vivemos com medo pelos motivos certos (se é que existem estes motivos.) Descrever o enredo é estragar boa parte do livro. Prefiro fazer só um resumo rápido, na forma que se segue: um sujeito acorda cedo em uma manhã de sábado e vê pela janela um avião em chamas sobre sua Londres quieta e escura (este fato aconteceu mesmo no início de 2003, com um avião de carga russo, cujos tripulantes genuinamente russos foram confundidos com árabes, xenofobismo comum nestes tempos bicudos em que vivemos.) Neste mesmo dia aconteceu também a maior manifestação de rua em Londres, um protesto contra o envolvimento da Inglaterra na guerra do Iraque. O personagem principal, um neurocirugião respeitadíssimo, sua mulher, seus filhos, seu sogro, têm planos de se encontrar na noite deste dia para um jantar de uma comemoração mundana qualquer. Ele tem compromissos corriqueiros neste dia: jogar squash, comprar peixes e especiarias; preparar o jantar, gelar os vinhos preferidos de seu sogro, pagar contas para sua mulher que está muito atarefada, visitar a mãe (que sofre de Alzheimer) em um asilo, assistir a um ensaio de seu filho músico, receber sua filha que volta a Londres após um longo período na França. Um acidente automobilístico besta entre ele e um grupo de sujeitos que parecem gângsters vai provocar no início da noite um reviravolta na vida desta família. Nada absurdo (como acontece mais comumente na vida real, mas o suficiente para fazê-los refletir sobre a redoma em que vivem.) Mais que nos mostrar como se passa um dia na cabeça de um personagem, McEwan nos mostra um panorama denso do homem moderno, com suas esperanças, seus medos, suas fragilidades mais entranhadas. Gostei particularmente do contrastre entre a descrição do que um sujeito pensa e as detalhadas descrições de intervenções cirúrgicas no cérebro feitas pelo neurocirurgião. Técnicas ao extremo, mas belíssimas de se ler. É um livro super bem escrito. Este sujeito é mesmo um excelente escritor.
"Sábado”, Ian McEwan, tradução de Rubens Figueiredo, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2005), brochura 14x21cm, 336 págs. ISBN: 978-85-359-0746-9

sábado, 18 de outubro de 2008

café titanic

Uma coisa que acontece sempre que consultamos uma biblioteca ou passeamos por uma livraria é nos deparar com algo totalmente novo. Estes lugares são mesmo parques de diversão para os sentidos. Pois noutro dia eu estava na CESMA, matando tempo, sem compromissos, e vi a lombada de “Café Titanic”. O nome chamou-me a atenção e eis que naquela hora tive em mãos pela primeira vez um livro de Ivo Ándritch, que vim a saber depois, ganhou o prêmio Nobel em 1961. O mundo real mais uma vez mostrou-me que por mais que me esforce em ler tudo que me cai nas mãos (tolo que sou) sempre haverá autores novos, livros novos, literaturas inteiras novas, para serem descobertas. Pouco adianta ser este leitor contumaz. Mas vamos ao livro. Ándritch nasceu em 1892, em uma região dos balcãs que hoje faz parte da Bósnia (na época era parte do império austro-húngaro.) Grande erudito, linguísta, professor, escritor e diplomata por muitos anos (do antigo Reino dos Sérvios, Crotas a Eslovenos e depois também da antiga Yugoslávia), Ándritch foi um dos responsáveis por compilar lendas populares, histórias e relatos dos muitos povos e religiões que coabitaram os balcãs (sérvios, croatas, bósnios, albaneses, montenegrinos, eslovenos, russos, ciganos, árabes, judeus, cristãos, ortodoxos, muçulmanos.) Referência intelectual em seu país, chegou a ser assediado pelo regime comunista de Tito, mas manteve corajosamente sua independência. Em “Café Titanic” temos uma pequena mostra da versatilidade e da vívida imaginação de Ándritch. Como em um mundo mágico, os dez contos deste livro apresentam pessoas, lugares, paisagens e histórias sempre muito tocantes, plenas de humanidade. No conto que dá nome ao livro lemos sobre um judeu sefardita que vê seu mundo desmoronar quando o ódio entranhado de seus antigos vizinhos aflora durante a primeira grande guerra; em outro aprendemos algo sobre um laborioso arquiteto do império otomano que se esforça em construir uma ponte sobre um dos rios da Bósnia, apesar do descrédito e achincalhe dos moradores locais; em outro conto acompanhamos uma disputa judicial entre um servo e um senhor quando da mudança de governo em uma região (os governantes mudam, mas não as regras de classe, nos ensina sutilmente Ándritch.) Vários contos se passam em épocas remotas, são histórias de vizires, beis, emissários de um distante mas poderoso sultão. Em todos eles os usos da linguagem na comunicação entre os homens são ressaltados. Os contos tem um estilo bem particular, um tanto diferente do que tenho lido ultimamente. São fáceis de ler, mas tão bem escritos e repletos de informação, que parecem jóias lapidadas durante anos. É um livro bem editado, traduzido diretamente do sérvio por Aleksandro Javonović, que também assina uma boa introdução e um necessário glossário. Ninguém se torna um especialista nos eslavos do sul após ler este livro, mas certamente vai ter sua curiosidade aguçada para entender um tanto deste mundo pouco conhecido.
"Café Titanic”, Ivo Ándritch, tradução de Aleksandar Jovanović, editora Globo, 1a. edição (2008), brochura 14x21cm, 278 págs. ISBN: 978-85-250-4412-9

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

ensino de filosofia

Don Ronai Rocha é um sujeito de multimeios e realmente cativa os viventes com sua conversa rica, sua prosa bem lapidada, sua generosidade e sua curiosidade ampla. Semanas atrás ele publicou “Ensino de Filosofia e Currículo” mas o lançamento oficial em Santa Maria será exatamente hoje, dia do professor, 15 de outubro. Preciso fazer um parênteses aqui. Leio meus livrinhos e vou resenhando neste blog exatamente na ordem cronológia que termino de lê-los (eu começo e abandono muitos outros pelo tempo e espaço.) Acontece que ler é mais rápido que resenhar. Pelas minhas contas eu deveria resenhar este do Ronai somente daqui a um mês, depois de um Ándritch, de um McEwan, de um Toscana, de um Pedrosa, de dois Montalbán e de um Singer. Mas achei a coincidência em terminar de lê-lo logo agora era rara demais para desprezá-la e vou encaixar esta resenha aqui. Devolvendo uma gentileza antiga eu digo: o Ronai, como Irene, não precisa pedir licença. Mas vamos ao livro. O objetivo de “Ensino de Filosofia e Currículo” é exatamente contribuir para o debate sobre a inserção da filosofia no currículo do ensino médio. Apesar de ser lei, há muita controvérsia sobre qual filosofia deve ser ensinada e muito mais controvérsia ainda sobre como estes conteúdos devem ser trabalhados nas escolas. Ronai nos oferece a força de sua experiência e seus argumentos junto com sua prosa delicada. O livro é bem escrito e faz um uso pouco corriqueiro de precisas metáforas, sem cair no lugar comum e na redução rasteira. Ele detalha bem os documentos do ministério da educação que orientam o ensino no nível médio por isto ao menos estas partes do livro (uns 30% eu acho) poderiam ser lidas por qualquer professor, de qualquer disciplina, com idêntico aproveitamento. Os cinco primeiros capítulos podem ser lidos separadamente, mas estão organizados em um progressivo grau de complexidade, sendo sempre mais técnicos. Os três últimos capítulos me parecem descolados destes cinco primeiros. Neles ele me parece tentar definir uma fronteira para os usos da filosofia em outras áreas, como na psicologia da infância (cap.6), nas demais disciplinas ensinadas no nível médio (cap.7) e na linguística (cap.8). Me parecem algo como exemplos de aplicação do que havia sido levantado e proposto antes. Temas que poderiam eventualmente serem introduzidos pelo professor de filosofia em suas aulas nas escolas. Eu, que sou o menor dos anões desta paróquia, estou bem longe de ser um entendido nesta área, mas do ponto de vista literário acho que teria sido melhor encaixar ao menos parte deste material nos capítulos anteriores, ou utilizá-los como apêndices ao corpo principal do texto (o final do capítulo 8 não, pois é onde as idéias do livro se encontram em um fechamento.) Bom. Aprendi um bocado neste livro, principalmente sobre didática e sobre a história do ensino no Brasil. As vezes eu acho que o processo educativo brasileiro é como um ensaio destrutivo da mecânica ou da física: após obtermos informações sobre um corpo de prova nós o deixamos destruído. Aquela informação será útil para outros sistemas, outros materiais, outros modelos e teorias, mas aquele corpo de prova em particular foi destruído no processo. Por vezes muitas experiências pedagógicas e didáticas, notadamente no Brasil, tem o mesmo grau de preocupação com seus grupos de estudo e de controle, suas cobaias, seus corpos de prova, pois no final são abandonados ágrafos, néscios e sandeus ao sair da escola. (Estes dois últimos parágrafos são meus. Don Ronai não disse nada tão indelicado no livro dele, sou eu que sou o mau humorado de plantão que estou a pensar um tanto aqui, após ler seu livro.) Bem. Na quarta capa do livro é dito que Ronai argumenta em favor do ensino de Filosofia. Mais do que isto acredito que seu livro sustenta argumentações várias em favor do ensino adequado de todas as disciplinas que sabemos serem caras ao homem. Farei propaganda deste livro sem medo, sem temor, (nec spe, nec metu) seguro que qualquer professor tem muito a ganhar profissional e pessoalmente com as reflexões de don Ronai Rocha.
Ensino de Filosofia e Currículo, Ronai Pires da Rocha, editora Vozes, 1a. edição (2008), brochura 15x24cm, 208 págs. ISBN: 978-85-326-3711-6

sábado, 11 de outubro de 2008

instrucciones

Meses atrás, quando estive em Madrid, este livro de Rosa Montero tinha acabado de ser lançado. Ele era visto aos montes, vermelhos e reluzentes nas prateleiras, a capa dura nos indicando que não era a melhor opção de livros para se despachar para casa (nem na bagagem, nem nas “cajas verdes” dos correos de lá.) Mas noutro dia, em plena Bienal de Livros paulista, eis que o vermelhão e a salamandra da capa me apareceram de novo, agora em brochura. Esta edição foi publicada na Argentina (os danados dos espanhóis tomaram conta de várias editoras latino-americanas, mas esta é outra história). “Instrucciones para salvar el mundo” é um bom livro. Depois de ler vários livros de um mesmo autor vamos aprendendo seus truques, suas manias, suas obsessões. Este segue um esquema 121212 (alternando duas histórias, de dois personagens da mesma geração mas de mundos distintos, que sabemos destinados a se cruzar no romance.) Um é taxista. Acabou de perder a mulher e está algo desnorteado nos suburbios de Madrid. O outro é médico. No meio de uma crise conjugal, deixa o tempo desaparecer enquanto brinca em um computador. Claro, em função disto é totalmente irresponsável no trabalho. Aos dois se somam uma prostituta africana, fugitiva de alguma guerra absurda daquele desgraçado continente e uma velha senhora caduca, ex-física, ex-professora, agora habitante do mundo cruel dos bares de beira de estrada. Como sempre acontece nos livros de Rosa Montero há assuntos demais sendo discutidos, ficamos ali tateando o romance, tentando entender para qual lado ele vai. Nisto ela se inspira na vida, que também se diverte em nos levar para todos os lados de uma vez. Há no livro a brutalidade do terrorismo, um tanto sobre o medo, a máfia, sobre negócios imobiliários escusos, sobre as relações entre homens e mulheres, sobre a fragilidade da ciência, sobre a inevitabilidade da solidão e da morte. É um romance bastante contemporâneo, sem anacronismos, realismos mágicos, soluções bestas. Rosa Montero enfatiza que a vida é muito mais exuberante e plena que nossa própria imaginação pode conceber. Por isto mesmo sempre gosto de lembrar que há coisas que acontecem na vida que surpreendem o mais cético dos escritores de ficção. Talvez eu não concorde com a esperança que brota do livro (talvez só mesmo as mulheres possam ter alguma esperança neste mundo), mas é um livro honesto, que vale o tempo do leitor.
Instrucciones para salvar el mundo, Rosa Montero, editora Alfaguara, 1a. edição (2008), brochura 15x24cm, 320 págs. ISBN: 978-987-04-1002-7

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

um pedante na cozinha

Gosto de cozinhar e de ler livros sobre culinária. Meu amigo Guga Pimenta diz vez ou outra que tenho mais livros de culinária que ele de qualquer outra coisa. Eu fico envaidecido e encabulado ao mesmo tempo e aí lembro da meia dúzia de livros de culinária que o Koji tem na sua cozinha. Ele sim é um cozinheiro de mão cheia, pleno de truques e habilidades, e que cultivou nos filhos e nos amigos o hábito prazeroso de ter nas refeições uma festa para os sentidos. Mas chega de reminiscências. “O pedante na cozinha”de Julian Barnes não é exatamente um livro de culinária, mas sim um razoável livro escrito por um bom autor. Um de meus livros favoritos é “O papagaio de Flaubert”, do mesmo Julian Barnes que assina este. Ele sabe contar uma história e há um sarcasco sutil em tudo o que escreve. Talvez estes textos tenham sido escritos antes para um jornal, vai saber, ou talvez ele tenha dado literariamente exatamente esta impressão de propósito, pois de fato é um escritor muito experimental. Mas eu disse que o livro é razoável, vejamos porquê: ele elenca questões importantes relacionadas aos livros de culinária: a falsa dificuldade ou simplicidade sempre alegadas de antemão pelos autores; a pretensão encarnada em todo autor e cozinheiro (a maioria já virou “chef” faz tempo); a ilusão das fotos e das cores; a criptografia das receitas mal formuladas; a ausência de tempos, quantidades e descrições corretas das especiarias e temperos, o fato dos utensílios e aparatos serem sempre distintos dos nossos; as obviedades e as extravagâncias que todo aprendiz de cozinheiro deve internalizar e/ou evitar. Seu livro fala basicamente de livros de autores ingleses, desconhecidos para este contumaz resenhador: Richard Olney, Nigel Slater, Marcella Hazan, Jane Grigson, Elizabeth David. Who? Esta última me soa familiar, mas eu não tenho nada dela em casa. Fazer o quê? Onde estão afinal os rodados Nigella Lawson, Jaime Oliver e Gordon Ramsay por exemplo? Contemporâneos demais, moderninhos demais parece dizer-me Barnes, caçoando. O livro de Barnes mostra o caminho: não ser escravo de um livro só, não ter medo de anotar as tuas próprias receitas, seguir seu instinto (o melhor seria dizer criar seu instinto culinário), não se prender a convenções tolas, tentar extrair prazer do processo e da companhia (sem isto não há jantar que resista). Para quem não tem medo de um forno e fogão vale uma folheada.
"O pedante na cozinha”, Julian Barnes, tradução de Jussara Simões, editora Rocco, 1a. edição (2008), brochura 14x19cm, 142 págs. ISBN: 978-85-325-2344-0

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

as catilinárias

Nos romances de Amélie Nothomb, sempre curtos, não há espaço para digressões supérfluas, portanto ela é invariavelmente direta, cortante, objetiva (mas também muito cruel, convenhamos.) Este romance é irritante do começo ao fim mas o leitor se deixa conduzir pela história e pela autora. Foi irritante para mim pois ela conseguiu fazer com que eu tivesse ganas de entrar na história e resolver tudo do meu jeito, tomar uma atitude guinesca contra o humor negro, o tédio, a vergonha, a inação e o sarcasmo dos personagens. Inevitável dizer que me surpreende muito a forma utilizada por ela para fisgar o leitor. Não há tempo para o sujeito inventar atalhos na leitura: ou é do jeito dela, com as imagens dela ou abandonas logo o romance. Terminado o livro entendo melhor o que está em jogo. Ela mostrou a que veio. O enredo é mesmo irrelevante: um casal de meia idade se muda para o campo e passa a ser progressivamente importunado por um vizinho bizarro. A incapacidade do ser humano de ser leal a si mesmo (em nome das convenções, da boa educação, da tradição) fica patente nesta história. O que no início é anacrônico no fim demonstra como podemos ser importunados (até mesmo por um livro afinal) à exaustão. Diferentemente das crianças (presentes em idéia no livro, apesar de haver poucas personagens jovens no texto) nós mais velhos dificilmente seguimos nossa intuição, nosso lado mais animal, selvagem, e aceitamos quase tudo sem reclamar. Para isto crescemos afinal. Não conheço muito a cultura francesa, mas até onde entendi o formalismo e a frieza nas relações francesas explicam muito o livro. Ao fim entendemos como inevitavelmente nos transformamos pelas ações (tanto nossas quanto dos outros). Se é para se resumir o livro em uma frase eu diria que o autoconhecimento é a única coisa honesta que um homem pode fazer a si mesmo. Notável escritora esta francesinha.
"As catilinárias”, Amélie Nothomb , tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht, editora Record, 1a.edição (1997), brochura 14x21cm, 144 págs. ISBN: 85-01-04914-X

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

rituais

Rituais é um bom romance. São três partes simétricas que se movimentam no tempo, primeiro estamos em 1963, voltamos para 1953 e por fim avançamos até 1973. Estamos a seguir um sujeito cuja vida é influenciada por duas pessoas que nunca se conheceram, pai e filho na verdade. Este sujeito, Inni Wintrop, é quem faz a conexão entre Arnold e Phillip Taads. O livro discute o quanto de um pai há num filho: será que genética é mesmo destino? Discute-se também sobre o quanto podemos ser cerebrais e frios mesmo sobre os assuntos mais pessoais e humanos. Além das simetrias de sempre há também o contraste entre a planície e a montanha, entre o mar e a neve, caros ao autor. Uma Holanda quase desconhecida para mim aparece neste livro. Também aprendi um tanto nas descrições do dia a dia do povo; da tradição e a religião; do hábito; da unificação européia; do papel do sexo, do amor e da morte na vida; da linguagem dura e áspera; do enfrentamento com a natureza. Nooteboom também me surpreende por juntar temas que me são caros há anos: Vermeer, gravuras japonesas, Espanha, mitologias. Há um erro absurdo de tradução, onde uma citação de um livro de Yasunari Kawabata, prêmio Nobel de 1968, que deveria ser algo como “mil tsurus”, “mil origames”, “mil garças”, se transformou em “mil guindastes”. Você está ali, totalmente budista, lendo sobre a cerimônia do chá, sobre os diferentes modelos de tijelas japonesas e de repente aparece um trator, um “crane” mal traduzido, o que significa que o livro foi traduzido do holandês para o inglês e depois para o português. Paciência. É mesmo um romance pequeno, duzentas e poucas páginas, mas muito bom de se ler e instigante mesmo. Lembrei por fim da Sibele e do Koji, que me ensinaram um dia como se deve estudar algo sobre o qual queremos entender mais: com informações precisas mas também com paixão. Entretanto, a idéia de que nem tudo pode ser aprendido nos livros paira sobre este, e isto leva um atento leitor a pensar.
"Rituais”, Cees Nooteboom, tradução de Irene Cubric, editora Nova Fronteira, 1a. edição (1995), brochura 14x21cm, 225 págs. ISBN: 85-209-0668-0

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

dia de finados

“Dia de Finados” é um belo romance de Cees Nooteboom. É um livro bem mais longo que os dois romances anteriores que li dele. As primeiras cem páginas são muito herméticas, obscuras mesmo, e eu tive de me esforçar muito para entender o que estava acontecendo, mas da mesma forma como repentinamente discernimos formas e cores em meio a uma espessa bruma matinal, de algum ponto em diante no romance tudo passou a fazer sentido, os personagens se materializaram (eles já estavam ali quase como fantasmas), o enredo se desdobrou. Um documentarista free-lancer, Arthur Daane, tem como projeto autoral fixar (em imagens e sons que filma e grava o tempo todo no livro) momentos quase imateriais, como o lento desaparecimento de pegadas sobre a neve, o ar se condensando próximo a nós em um dia muito frio, o gelo se formando sobre a superfície tépida de um lago, a amplidão de lugares públicos vazios. Há uma presença forte da morte e da perda neste livro. A mulher do personagem principal e seu filho morreram recentemente em um acidente de avião. Deslocados do texto principal vários acidentes, violências, descuidos e mesmo vontades ceifam os homens e as mulheres, personagens aos quais mal fomos apresentados. O livro se passa basicamente em uma Berlin invernal nos tempos imediatamente seguintes a queda do muro (início dos anos 1990), mas há algo sobre as rixas entre a Holanda e Alemanha, bem como sobre as rivalidades entre a esta última e a Rússia ou sobre o contraste entre o tradicional e o novo no Japão. Nooteboom gosta de simetrias (acho que isto também é um padrão nele), os personagens por vezes viajam pelo livro e pela Berlin enevoada seguindo os pontos cardeais. O restaurante onde os personagens principais se encontram lembra um tanto “La Colmena”, do Camilo José Cela. Seus amigos são Arno, um filósofo; Victor, um escultor; Zenóbia, uma física/astrofísica russa. Todos muito intelectuais e sofisticados, discutindo filologia, o sentido da vida, a política de seu tempo, a vida pessoal de cada um. O estranhamento e o deslocamento, a orientação vaga que temos durante as viagens, a experiência religiosa, o mundo acadêmico, a presença da Espanha, também são temas presentes no livro. Mas o que emerge da trama é a busca do entendimento do mundo feminino, afinal não estamos sempre a seguir uma mulher, falando algo seu nome, como um mantra? Uma mulher jovem aparece no livro. Ela estuda um período obscuro da história espanhola, quando uma rainha, Urraca, dominou León e Castela. Ala putcha! Como a Espanha sempre dá um jeito de aparecer nos livros de Nooteboom! A mulher aparece e desaparece de seu cotidiano como as imagens fugidias que ele perseguia no início do livro. Conhecer de fato esta mulher passa a ser a nova obsessão do documentarista. Nada transcendental, mas honesto e instigante. Gostei.
"Dia de Finados”, Cees Nooteboom, tradução de José Marcos Macedo, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2001), brochura 14x21cm, 345 págs. ISBN: 85-359-0146-9