domingo, 28 de março de 2010

oscar wao

Soube deste livro por recomendação de duas pessoas cuja opinião respeito muito: Sibele Andreoli e Luiz Schelp. Trata-se de um livro que ganhou o prestigioso prêmio Pulitzer de 2008 e onde se conta ficcionalmente um pouco da história da República Dominicana. Este desgraçado país é vizinho do Haiti e com ele divide um passado de misérias tanto no período colonial quanto naquilo que deveria ser chamado de período de independência, de democracia, mas que é apenas um contínuo período ditatorial, onde um dos canalhas de plantão governa com maior ou menor sanha. O ditador retrado aqui é Rafael Trujillo, um possesso que não fica nada a dever a seus contemporâneos Papa Doc, Fidel Castro, Augusto Pinochet. Se nos textos de Alejo Carpentier que li recentemente aprende-se muito sobre o Haiti neste temos um panorama da República Dominicana bastante vívido, apesar de terrível, opressivo, cruel. Dois narradores se alternam em contar a história de um jovem dominicano, Oscar Leon. Um é seu cunhado, Yunior, e outro é sua irmã, Lola. O livro é dividido em capítulos temáticos. No primeiro Yunior conta os dias de Oscar como um estudante nerd em um colégio nos Estados Unidos. Gordo e algo inepto, não consegue se relacionar com nenhuma garota. No segundo é Lola quem dá sua versão deste período, tentando enquadrar melhor a obsessão de seu irmão com o sexo que não consegue ter. No terceiro capítulo somos levados ao passado e acompanhamos a história da mãe de Lola e Oscar, seus amores, suas desventuras, sua luta para sobreviver em um país violento por natureza. Na sequência voltamos aos dias de Oscar e Yunior na universidade, onde a impossibilidade de Oscar se envolver sexualmente com alguém continua, o que afeta todos os demais aspectos de sua vida. No quinto capítulo voltamos uma vez mais para o passado e desta vez sabemos a história dos avós de Oscar e Lola. O pai é um médico de sucesso, ligado a elite cultural de seu país (e ao mesmo tempo ligado a aquela fração da sociedade que finge não ver os desmandos do governo, algo que vivemos agora mesmo no Brasil em alguma medida). Ele tem sua vida arruinada pela cupidez do ditador Trujillo, quando recusa a este a oferta da virgindade de uma de suas filhas. As filhas maiores e a mulher morrem miseravelmente, enquanto ele padece décadas de uma prisão brutal, onde enlouquece lentamente. A filha caçula (que ele não chega a conhecer) virá a ser a mãe de Oscar e Lola, e como o pai sofrerá nas mãos dos ditadores dominicanos que sucedem Trujillo após seu assassinato (provavelmente orquestrado por espiões americanos). Nos capítulos finais acompanhamos como Oscar, deslocado na sociedade americana, onde dá aulas e escreve ilegíveis romances de ficção científica, decide permancer na República Dominicana após umas férias e acaba se apaixonando por uma mulher mais velha. O namorado desta mulher dá surras épicas em Oscar, mas este não se rende a sua vontade de consumar enfim um intercurso sexual. Após uma primeira surra é levado de volta aos Estados Unidos para se recuperar, mas com o tempo ele finalmente retorna e encontra a morte nas mãos do sujeito. Em um epílogo ficamos sabendo que em uma carta a sua irmã e cunhado ele conta como finalmente conseguiu transar com a namorada (mesmo sabendo que seria morto depois). O livro inclui várias notas, onde o autor explica os fatos da história dominicana, com um sarcasmo que ameniza um tanto as desgraças pelas quais este país passou e passa. O tema principal deste livro é mesmo a luta humana entre a pulsão do sexo e a pulsão da morte. Há várias passagens memoráveis, como as surras no meio de canaviais (difícil saber qual a mais cruel, a que sofre a mãe de Oscar ou aquela que Oscar sofre anos depois). Ao mesmo tempo há muito humor no livro, muitas citações da cultura pop, de livros e filmes, enfim, muita coisa para se pensar com calma, para se refletir um tanto sobre a alma humana. Este é mesmo um grande livro. [início 17/03/2010 - fim 20/03/2010]
"A fantástica vida breve de Oscar Wao", Junot Díaz, tradução de Flávia Anderson, editora Record, 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm,332 págs. ISBN: 978-85-01-08180-3

sábado, 27 de março de 2010

zazie no metrô

Sabia da existência deste livro, mas nunca havia tido a chance de lê-lo. "Zazie no metrô" tem uma versão cinematográfica divertidíssima, que assisti há quanto tempo? Trinta, trinta e cinco anos, quem sabe? Esta bela edição comemorativa do cinquentenário de lançamento chamou-me a atenção assim que a vi, nas prateleiras da CESMA, claro. O texto está impresso em papel bíblia, dobrado de forma a ter uma parte interna onde por sua vez foram impressas ilustrações com detalhes de capas de livros e anúncios publicitários da época da primeira edição francesa, em meados dos anos 1900. O livro tem uma sobrecapa feita de um destes cartazes, o que dá a edição uma beleza particular. Lemos o livro como se estivéssemos em um parque de diversões. O autor, Raymond Queneau, é um dos idealizadores do grupo literário experimental OuLiPo, do qual também fizeram parte Italo Calvino e Georges Perec. Este livro fez muito sucesso e deu fama e visibilidade ao grupo. Queneau utiliza uma técnica narrativa onde se privilegia o som das palavras, o que dá ao texto um frescor, uma dinâmica, que não deixam o leitor largar o livro. Não se trata de um experimento linguístico bobo, mas sim algo que capta a forma como distintas classes sociais em distintas situações se expressam. Os diálogos podem parecer disparatados a princípio e contam uma história curiosa. Zazie é uma menina desbocada que vai passar um final de semana em Paris com um tio. Sua mãe vai aproveitar a folga para conhecer melhor seu novo namorado. O tio é um transformista, vive na noite parisiense e tem um círculo de amigos incomuns: um taxista, um dono de bar, um sapateiro, um taxista e uma garçonete (acompanhados de um papagaio que repete "falar, falar, você só sabe fazer isto", o que é uma síntese deste livro, onde todos falam o tempo todo). Zazie quer conhecer o metrô de Paris, mas uma greve impede a menina de fazê-lo. Aborrecida ela sai sozinha pela cidade. Um sujeito (que pode ser um pedófilo ou mesmo um policial) a leva de volta para casa e se junta ao pequeno bando de amigos do tio de Zazie. Durante o dia eles encontram turistas, policiais, gente da noite, vagabundos e voyers, se envolvendo nas estrepolias geradas pela espirituosa Zazie. Lembrei de passagens do filme (que preciso experimentar uma vez mais um dia destes). É um livro interessante, ágil, que leva o leitor a pensar nas transformações pelas quais passamos na vida. [início 15/03/2010 - fim 16/03/2010]
"Zazie no metrô", Raymond Queneau, tradução de Paulo Werneck, editora Cosac Naify 1a. edição (2009), brochura 15,5x22 cm,192 págs. ISBN: 978-85-7503-763-8

quinta-feira, 18 de março de 2010

a estrada

Em "A estrada" Cormac McCarthy nos conta uma história terrível, mas não inverossímel. Em um mundo pós-apocalíptico, um mundo totalmente transformado, um sujeito e seu filho vagam pelos destroços tentando sobreviver. O céu e o sol estão permanentemente escondidos por nuvens de poeira. Os dias são vagamente cinzas, uma penumbra permite que se enxergue o que vem de longe. As noites são negras como eram antes da presença dos homens e da invenção do fogo. Das cidades, das florestas e dos campos cultivados, das rodovias e dos portos pouco resta, destruídos que foram por explosões, incêndios e saques. Não há mais eletricidade, sinais de telecomunicação, organização social, regras de conduta. Em sua jornada, pai e filho, tentam evitar outros sobreviventes, alguns deles organizados em milícias barbarizadas, que matam quem encontram para canibalizá-los. McCarthy não explica a origem deste caos, nem explica a origem do mal nos sobreviventes. Ele foca na relação pai e filho, no papel do primeiro em instigar no filho alguma ética, algum juízo de valor, que se contraponha ao que ambos têm, o absoluto instinto de sobrevivência de que fazem uso para continuarem juntos e ilesos. A construção do romance é por si só sufocante, as situações que os personagens experimentam repetitivas. McCarthy oprime sem dó o leitor, apresentando a ele uma situação que pode acontecer conosco se explosões nucleares destruíssem o planeta. Ele não faz concessões baratas nem usa truques para contentar o leitor. Preciso ler mais coisas deste sujeito. Em tempo: soube deste livro por indicação do Marcos Barreto (as dicas insuspeitas e francas são mesmo sempre as melhores). [início 12/03/2010 - fim 15/03/2010]
"A estrada", Cormac McCarthy, tradução de Adriana Lisboa, editora Alfaguara, 1a. edição (2007), brochura 15x23,5 cm, 240 págs. ISBN: 978-85-60281-26-8

quarta-feira, 17 de março de 2010

a elegância do ouriço

As primeiras 100 ou 120 páginas de "A elegância do ouriço" são realmente boas e apresentam um tanto dos hábitos e características da sociedade francesa. O que me parece mais explícita é a descrição de como as classes são estratificadas culturalmente na França, ou mais propriamente dizendo, de como os indivíduos ascendem ou não socialmente em função do tipo de educação formal que têm por lá. Muriel Barbery nos mostra nestes primeiros capítulos os habitantes de um prédio de classe média alta: empresários, políticos, profissionais liberais de sucesso. O dia-a-dia destes personagens é resenceado por dois olhares distintos: uma garota de seus doze, treze anos, filha dileta e inteligente de uma das famílias abastadas do prédio, e uma senhora de meia idade, pouco mais de cinquenta anos, que trabalha como zeladora do edifício. Alternadamente acompanhamos a garota e a senhora nas suas estratégias de convívio social. Ambas são pessoas mais ricas e complexas do que aparentam ser, mas vivem basicamente em conflito, pois não é trivial conviver em um mundo de aparências e de regras sociais rígidas. Por volta do final da primeira terça parte do livro um personagem morre (é o proprietário de um dos grandes apartamentos do prédio e é o personagem do livro "a morte do gourmet" que resenhei imediatamente antes deste). Com a morte do crítico gastronômico seu apartamento fica vago e um personagem novo é introduzido na trama. Como em todo livro que segue esta fórmula o novo personagem desestabiliza os demais e os força a transformações rápidas. Este personagem é um japonês riquíssimo e sofisticado que atrai, como não, a curiosidade de seus vizinhos. Ele acaba se interessando mais pelas duas narradoras do livro (a menina e a senhora zeladora) do que por seus iguais. A partir daí o livro desanda. São "japonesices" demais, filosofias diluídas demais, comentários literários simplistas e rasos demais para um livro só. O final é digno de uma novela mexicana. Alguém precisaria mandar um exemplar do "A hora da estrela" para a autora do livro aprender como um ser humano mais verossímel morre em um livro de verdade. Bueno. De qualquer forma é um livro interessante, que se lê de uma sentada só e onde se aprende um tanto sobre a sociedade francesa. Preciso agradecer a Sibele pela dica (sempre mais honesta do que eu quando se trata de avaliar as coisas). [início 09/03/2010 - fim 12/03/2010]
"A elegância do ouriço", Muriel Barbery, tradução de Rosa Freire d´Aguiar, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2008), brochura 14x21 cm, 350 págs. ISBN: 978-85-359-1177-0

sexta-feira, 12 de março de 2010

a morte do gourmet

Em "A morte do gourmet" acompanhamos dois planos de histórias que se entrelaçam. Um dos planos se concentra nos breves minutos que antecedem a morte de um sujeito. Ele é um importante crítico de gastronomia e mora em um sofisticado prédio de Paris. Sua mulher, seus filhos, seus vizinhos, seu médico e vários outros personagens (incluindo um gato e uma estátua) têm sua voz e contam um tanto de suas experiências com o sujeito que está à morte. Não são exatamente memórias edificantes. O sujeito era arrogante, egoísta e auto-centrado. No outro plano, em capítulos intercalados aos demais, é a memória do sujeito que se manifesta, recolhendo passagens de sua educação gastronômica, suas influências, seus medos e fraquezas, detalhes de sua ascensão no competitivo mundo da culinária. Em seus últimos momentos ele tenta lembrar de um sabor específico que marcou a sua infância. É um pequeno livro que se lê quase de um fôlego só. Não é o melhor livro do ano, mas ele se defende sozinho. Muriel Barbery publicou-o originalmente em 2000 e boa parte destes personagens irão aparecer em seu outro romance, "A elegância do ouriço", que fez muito sucesso (e que vou resenhar em breve). A quarta capa e as orelhas do livro dão o nome do sujeito que está à morte, mas este nome não aparece em parte alguma do livro. Claro, o editor brasileiro ajuda o leitor com esta informação roubada do outro livro (publicado em 2006, mas traduzido antes no Brasil). Não gosto muito disso mas não há o que fazer. [início 08/03/2010 - fim 09/03/2010]
"A morte do gourmet", Muriel Barbery, tradução de Rosa Freire d´Aguiar, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm, 125 págs. ISBN: 978-85-359-1461-0

quinta-feira, 11 de março de 2010

libro de sent soví

Este não é exatamente um livro de culinária praticável. A descrição das quantidades não é muito precisa e não há ilustrações que mostrem a aparência final dos pratos, mas as sugestões são curiosas e a simplicidade dos procedimentos denota aquilo que hoje mais admiramos em uma gastronomia: o respeito aos ingredientes e as técnicas. Escrito provavelmente no início do século XIV, por um sujeito à serviço de nobres ingleses, "Libro de Sent Soví" foi escrito em catalão e disputa com receitários alemães, italianos e franceses a primazia entre os livros de culinária medievais. É um livro que foi compilado por um medievalista alemão no final dos anos 1970. As receitas se situam naquilo que chamamos culinária mediterrânea, com ênfase nos pães, no óleo de oliva, nas sementes, nas frutas cítricas e nos frutos do mar. Um terço do livro corresponde a uma introdução assinada por Daniel Vázquez Sallés, um jornalista que contextualiza o livro em seu tempo e lugar. Aprendemos um bocado com ele, principalmente algo caro a cultura catalã: sua vocação para a independência, originalidade e criatividade. O livro inclui também uma dezena de ilustrações feitas a partir de gravuras e tapecarias medievais, todas sobre o saboroso tema da antiga arte de comer bem. É hora de começar a pensar nos pratos de inverno que vou preparar. É hora de voltar a eterna luta contra o fogo. [início 26/02/2010 - fim 07/03/2010]
"Libro de Sent Soví", Anônimo do século XIV, MC ediciones, 1a. edição (2008), brochura 14x21 cm, 137 págs., sem ISBN

quarta-feira, 10 de março de 2010

primer amor, últimos ritos

Em 1975, com pouco mais de vinte e sete anos, Ian McEwan publicou este livro de contos e foi imediatamente reconhecido como um dos melhores escritores ingleses de sua geração, ganhando vários prêmios literários nos anos seguintes. São oito contos poderosos, que lembram a força de um outro grande livro de estréia (Goodbye, Columbus), de um outro grande escritor (Philip Roth). Os temas são variados: ora é a solidão que domina o enredo dos contos; ora a juventude e sua potência, para o bem e para o mal; em alguns há um clima de mistério e magia, noutros humor e ironia, explícitos. A força do sexo e do amor percorre a maioria das histórias. A ambientação delas se concentra nos bairros de classe média baixa, na periferia inglesa pobre dos anos 1970, ou ainda no campo inglês, onde é possível passar alguma tempo das férias de verão sem se gastar muito. É difícil eleger um conto em particular como melhor que os demais. Em "Mariposas" um jovem conta sua versão de como encontrou uma garota afogada. Em "Fabricación casera", o primeiro, um outro jovem conta sobre sua iniciação sexual. "Disfraces", o último, é terrível em sua descrição de como indivíduos de duas gerações podem ser tão antagônicos. Nos contos a inocência é sempre aparente e não pode escusar, não pode eximir, não pode justificar. Apesar da violência (contida ou não) das histórias, todas alcançam uma leveza incomum, são divertidas, levam o leitor a um mundo muito particular. Ian McEwan soube mesmo como arrebatar seu público desde o primeiro livro. [início 22/02/2010 - fim 06/03/2010]
"Primer amor, últimos ritos", Ian McEwan, tradução de Antonio Escohotado, editorial Anagrama, 1a. edição (2008), brochura 14x21 cm, 144 págs. ISBN: 978-84-339-7323-8

segunda-feira, 8 de março de 2010

o vendedor de passados

Ainda incomodado com as ressonâncias de "Barroco tropical" resolvi ler algo mais de José Eduardo Agualusa. Optei por "O vendedor de passados", publicado em 2004. Trata-se de um pequeno livro, pouco menos de 200 páginas, editadas com generosos espaços em branco e dividido em muitos capítulos com títulos esdrúxulos, artifícios que devem reduzir em ao menos um quarto o tamanho do livro impresso. Paciência. A história é curiosa. Um sujeito vive na desgraçada Angola do período pós-colonial. Seu ofício é inventar passados edificantes para a elite arrivista de seu país. Aparentemente ele é bem sucedido e mantém uma clientela regular. Um dia um fotógrafo pernóstico o visita e solicita seus serviços. O trabalho é feito mas o sujeito se empolga tanto com o passado construído que resolve percorrê-lo fisicamente (visitando pessoas, cemitérios, cidades que nunca frequentou), como ele fosse mesmo o sujeito inventado. Ele muda seu sotaque, muda sua forma de vestir-se. Ele vê um mendigo algo louco e este torna-se sujeito de seu trabalho fotográfico. Uma outra fotógrafa, bastante jovem, também aparece na trama. O construtor de passados se apaixona por ela. As histórias destes quatro personagens se enredam e se tornam mais complexas. Surge o terrível passado real angolano, as histórias da guerra, da violência e do crime que grassou por Angola após sua independência de Portugal. Lembrando o que nos ensina Beckett (citando a obra de Proust), também para Agualusa os homens que não se esquecem de nada nunca se lembram de nada, portanto também nos lugares onde não se esquece nada, nada pode ser verdadeiramente relembrado. O narrador do livro é um "osga", que para angolanos e portugueses é algo que se parece com o que eu entendo por salamandra. O "osga" sabe-se a reencarnação de um homo sapiens sapiens e tem saudades de seu passado. Ele e o inventor de passados não conversam exatamente, mas sabem da existência um do outro (o "osga" tem até nome próprio) e interagem através dos outros personagens (pois é a salamandra que sonha com a vida inventada e a vida real dos outros personagens). Apesar da lembrança dos acontecimentos terríveis que assolaram Angola há uma esperança que percorre o livro e que deixa o leitor em paz. Como acontece nas histórias de amor (e em "o vendedor de passados" se conta uma história de amor) no final o mocinho sai a procurar pela mocinha e tenta construir um sonho feliz a dois. [início 20/02/2010 - fim 05/03/2010]
"O vendedor de passados", José Eduardo Agualusa, editora Gryphus, 1a. edição (2004), brochura 14x21 cm, 199 págs. ISBN: 978-85-7510-092-0

domingo, 7 de março de 2010

whatever

Devemos sempre respeitar as idéias de um autor, mas para mim "Whatever" não é exatamente um livro de contos (Ulalá, quem sou eu, além do menor dos anões desta paróquia, para entrar nesta enrascada descrever as fronteiras do quê é um conto afinal). Bueno. Chamar "Whatever" de romance talvez incomodasse o Leonardo. Eu mesmo acredito que há algo de romance de formação nele, mas como se desenvolver, se formar, é algo que a psique do personagem que percorre todos os nominados dez contos exatamente se recusa a fazer, há um anacronismo meu no uso desta acepção. Talvez eu pudesse dizer que "Whatever" é um "Bildungskurzgeschichte" (se é que don Robson e a língua alemã permitam tal construção), ou seja, algo como contos de formação: já que embora o tempo flua para o personagem e ele pouco se modifique, se transforme, se desenvolva, ao chegarmos ao último conto encontramos uma nova encarnação do garoto que sonha no primeiro dos contos que lemos. Mas esta é uma questão para os críticos formais, não para mim. Leonardo Brasiliense nos apresenta neste bem editado livro dez histórias curtas que um sujeito experimenta, ou melhor dizendo, histórias que um jovem brasileiro entre seus 14 e seus 17 anos experimenta. São como janelas na vida deste rapaz. Algumas são invenções dele mesmo, seus sonhos, suas angústias, suas dificuldades de operar no mundo real; outras são narrações curtas de como ele resolve (ou não resolve) eventos algo importantes de sua vida. Desde a primeira história ele se revela um bom observador e um bom descritor das sutis diferenças de recepção que seus atos provocam em terceiros. Acompanhamos o personagem, João Pedro, em experiências simples: sua festa de aniversário; seu primeiro "bico", um trabalho de meio período; suas andanças sem rumo pela cidade; sua socialização com outros garotos e garotas, na escola e em festas juvenis; sua avaliação do constrangimento geral que a prisão do pai de um colega provoca; sua reação aos amigos, a princípio tão diferentes dele, com os quais se relaciona; seu envolvimento com uma menina, com quem imagina poder se apaixonar; sua escolha de uma opção para o exame vestibular. São coisas que afinal acontecem com todos os garotos e garotas nesta faixa de idade. Não sei avaliar se as últimas legiões de garotos e garotas que passam por esta idade são menos ou mais indiferentes à vida que aquelas que as precederam. Talvez seja um defeito humano, muito nosso, como a miopia ou o diabetes por exemplo, acreditar que somos particularmente mais atuantes, gregários, solidários e simpáticos que nossos filhos. É difícil rotular. Ao mesmo tempo os rótulos servem para delimitar assuntos, temas, e nos ajudam a localizar padrões e caminhos. De qualquer forma posso registrar que "Whatever" é um bom livro, que independe de alguma sociologia, de alguma interpretação sociológica. São histórias que lemos com prazer, que nos remetem a situações que em certa medida já encarnamos, que nos fazem interpretar melhor o mundo em que vivemos. Se a função da literatura é levar um leitor a pensar, Leonardo Brasiliense acertou neste livro. Por fim cabe registrar que o livro tem discretas ilustrações de uma jovem designer e que Leonardo usa (com parcimônia) um recurso metalinguístico - o autor interferindo no enredo explicitamente - que enriquece o livro. Agora um "spoiler" rápido: só achei estranho celulares e videoclipes dos Mamonas Assassinas na primeira história, mas era mesmo um sonho tudo aquilo afinal. [início 10/02/2010 - fim 04/03/2010]
"Whatever", Leonardo Brasiliense, ilustrações de Juliana Dischke, editora Artes e Ofícios, 1a. edição (2009), brochura 16x23 cm, 127 págs. ISBN: 978-85-7421-124-4

sexta-feira, 5 de março de 2010

jesus

Talvez não seja exatamente o talento mas sim a consciência de uma voz própria aquilo que diferencia um artesão, mesmo que bastante capaz, porém ordinário, de um verdadeiro artista, aquele que se sabe inovador. Pensei nisto quando li este pequeno livro de quadrinhos baseado na vida de Jesus, o filho de José e Maria, publicado por Rafael Koff, um jovem publicitário radicado em Porto Alegre. A edição do livro é discreta. Não há ISBN, nome da editora, ano da edição ou referência adicional ao autor além de seu nome. Soube depois de ler o livro que Rafael já publicara suas tiras regularmente em uma espécie de blog ilustrado e já havia granjeado uma fiel legião de admiradores (bem como alguns aborrecimentos com detratores anônimos). A história do Jesus histórico e bíblico pode ser encontrada em toda a parte e está incorporada à psique da maioria das pessoas do mundo ocidental, mesmo aquelas que não professem religião alguma, ou que sejam adeptas de algo diferente do cristianismo. O que Rafael faz com suas tirinhas é dar uma dimensão humorística e visual bastante forte e uniforme a seu personagem. Esta uniformidade conceitual no traço e no enredo das histórias acompanha os passos do jovem Jesus até sua versão de Jesus redivido (vingativo), passando pelas encarnações sucessivas de adolescente, homem maduro e pregador. O traço de Rafael é muito bom e não ficamos inertes às propostas que ele faz para a origem da inveja de Judas, quando ilustra a indiferença da deidade pai de Jesus ou ainda quando apresenta os acertos e desacertos de um Jesus que produz milagres na época em que ainda não controlava seus poderes divinos. São tirinhas de humor que não são das mais ofensivas que já li produzidas a partir deste poderoso personagem, mas certamente figuram entre as mais originais. Elas demonstram como o humor pode revelar facetas das estratégias mentais dos doutrinadores cristãos e como o humor pode provocar nos leitores algum estranhamento, algum vislumbre de falha no castelo mítico do cristianismo. Seguro que Rafael não é tão pretensioso como esta frase minha sugere, mas acredito mesmo que livros como este são ferramentas fundamentais para libertar - de alguma forma - os crentes (de qualquer religião, de qualquer lugar e tempo). Ulalá. Rafael há de entender que curiosamente há uma ironia adicional, uma ironia auto-imune, nisto tudo. [início 01/01/2010 - fim 04/03/2010]
"Jesus", Rafael Koff, editora Manuzio, 1a. edição (2009), brochura 21x7,5 cm, 96 págs., sem ISBN

quinta-feira, 4 de março de 2010

gourmet

Se há uma coisa que um sujeito precisa aprender é dedicar tempo e prazeres a si mesmo. Claro, nascemos focados em prazeres sem fim, mas assim que ouvimos o primeiro "não" e ato contínuo somos privados de um seio pela primaveira vez percebemos que algo começa a não ir bem afinal de contas (estava tudo indo bem demais para ser verdade). A vida em sociedade precisa destes condicionamentos. O mundo é assim. Bueno. Estive em São Paulo para os festejos de aniversário de meu pai, 85 anos no último 22 de fevereiro. Grandes festas e genuína diversão. Enquanto procurava um presente para ele, em um bairro japonês da cidade, encontrei este mangá dedicado a culinária. "Gourmet" foi publicado originalmente em 1997, escrito e desenhado por dois ilustradores japoneses. O principal deles, Jiro Taniguchi, já é um senhor de seus sessenta e tantos anos e é conhecido por seu trabalho focado na descrição dos costumes e hábitos da sociedade japonesa. Já ganhou muitos prêmios. Em "Gourmet" o que o personagem principal faz é basicamente comer. Quase nenhum outro aspecto de sua vida, seus afazeres é explicitado. Sabemos que ele trabalha com comércio exterior, é autônomo, morou na Europa, teve uma noiva, mas de seu dia-a-dia acompanhamos apenas suas excursões para almoços, jantares e lanches rápidos em lugares e horários inusitados. É tudo tão vívido, tão rico. As imagens nos levam para aquelas mesas, aqueles balções, como quem vai para uma Citera gastronomica. Por vezes parece que estamos prestes a receber também nossas porções, nossos pratos, que vamos poder compartilhar daqueles sabores e texturas. Leio o livro e lembro imediatamente de 'Tampopo", aquele filme de 1985 dedicado aos prazeres da culinária, a busca pelo "lamen" perfeito. Que filme maravilhoso. Nos dezoito capítulos de "gourmet" acompanhamos o personagem por frituras e grelhados, pratos feitos no vapor ou servidos crus, simples como o arroz e sofisticados como o polvo ou o carangueijo. A edição é muito bonita, com um glossário bastante detalhado dos pratos e receitas apresentados no livro. Há também um posfácio assinado por Taniguchi, onde ele conta como se inspirou para produzir o livro, como frequentou restaurantes e bares populares de Tóquio, Osaka e Quioto. Este é um mangá intimista, que se lê com muito prazer e que não se esquece tão cedo, nem mesmo após uma boa refeição. Ah! Meu pai não ganhou comida japonesa de presente, mas sim um DVD com músicas do Paulinho da Viola, mas esta é outra história. Itadakimasu! [início 22/02/2010 - fim 04/03/2010]
"Gourmet", Jiro Taniguchi e Masayuki Qusumi, editora Conrad, 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm, 200 págs., ISBN: 978-85-7616-313-8

segunda-feira, 1 de março de 2010

barroco tropical

Não gostei deste livro. Todavia gostei de uma coincidência, que só os livros sabem trazer: terminei de lê-lo exatamente um ano após Agualusa terminar de escrevê-lo, eu em um 19/02 na quente Santa Maria, ele em um 19/02 na fria Amsterdam, onde passou uma temporada como escritor-bolsista residente. Talvez por conta disto (do fato do livro ter sido em parte escrito na Holanda) eu sinta algo nele que faz-me lembrar coisas do Cees Nooteboom, um holandês que eu gosto de ler (lembrei particularmente do artifício das asas, dos anjos, da queda, utilizado por Nooteboom no "Paraíso perdido"). Bueno. Agualusa conta em "Barroco tropical" os sucessos de um triângulo amoroso. Vários personagens tem voz e contam como um sujeito (Bartolomeu, o narrador principal) se envolve aos poucos, mas intensamente, com uma cantora angolana muito famosa. Há encontros e desencontros nos passados dele, da cantora, de sua mulher, seu sogro, dos amigos em comum e principalmente desencontros com uma outra moça (ex-Miss Angola e relacionada com os poderosos do país) que num surto psicótico acreditava ser "Maria, mãe de Jesus" e pretendia seduzir Bartolomeu. Agualusa utiliza as tramas amorosas para descrever um tanto da história recente de Angola, sua independência, sua guerra civil, a ascensão de uma elite governante contraditória, patética e venal (como costuma acontecer em todos os lugares desgraçados deste mundo). Gostei da descrição das línguas de Angola e dos paralelos entre o sincretismo angolano e brasileiro, e também do trecho onde ele fala da influência das novelas brasileiras na linguagem utilizada pela população angolana. Todavia o livro tem muitas bobagens que me irritam: umas obviedades bestas de almanaque antigo (ou típicos de revistas femininas modernas) espalhadas pelo texto; um epílogo que acho desnecessário, que explica demais, que se justifica demais; uma seção de esclarecimentos onde Agualusa parece se prevenir de um eventual processo judicial, ainda mais patético que o epílogo. Preciso ler algo mais dele (pois gostei bastante do romance "As mulheres de meu pai" e do livro de contos "Manual prático de levitação"). Veremos. [início 12/02/2010 - fim 19/02/2010]
"Barroco tropical", José Eduardo Agualusa, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm, 344 págs. ISBN: 978-85-359-1569-3