segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

o romancista ingênuo e o sentimental

Eu já tinha decidido a terminar as postagens deste 2011 com o livro anterior, o interessante Donde se guardan los libros, de Jesús Marchamalo, mas li esse pequeno livro de Ohran Pamuk e não consegui esperar até janeiro. "O romancista ingênuo e o sentimental" é resultado da participação de Pamuk nas Norton Lectures, da Harvard University, no semestre letivo de 2009-2010 (já li vários livros saídos dessas conferências, livros de Northrop Frye, Harold Bloom, Italo Calvino e Umberto Eco). Utilizando uma idéia original de Schiller, Pamuk separa os romancistas em dois grupos: aqueles que não se preocupam com os aspectos artificiais da escrita e da leitura dos romances (os "ingênuos") e aqueles que dão muita atenção aos métodos de escrita e à maneira como nossa mente opera quando lemos uma história (os "sentimentais", ou "reflexivos"). Interessante, mas como qualquer classificação binária o argumento parece facilitar o entedimento da complexidade que é o ofício de produzir ficção na forma de romance, entretanto acaba apenas oferecendo mais temas de reflexão que respostas definitivas. São seis capítulos, seis palestras de mais ou menos cinquenta minutos. O texto é bem escrito, didático, sem malabarismos. Pamuk advoga um procedimento de escrita onde o romance pode ser associado à pintura de um grande quadro; compara os romances à museus da língua e dos hábitos; fala da insuficiência inata dos romances, pois eles são idealizações da realidade; fala de um "centro atrator" dos romances; nos ensina que o esforço por ler um grande romance está relacionado a nosso desejo de ser especiais, de nos distinguir dos outros; comenta sobre as diferenças de um escritor europeu ou americano e os escritores da periferia, como ele; tenta transmitir seu otimismo com o futuro do romance, como arte poderosa e seminal. O livro inclui um bom índice remissivo. Leitura divertida para esses dias vagabundos de final de ano. Bueno. Agora é oficial, cousas novas, só em 2012. [início 13/10/2011 - fim 25/12/2011] 
"O romancista ingênuo e o sentimental", Orhan Pamuk, tradução de Hildegard Feist, São Paulo: editora Companhia das Letras (1a. edição) 2011, brochura 14x21, 146 págs. ISBN: 978-85-359-1984-4 [edição original: Saf ve Düşünceli Romancı (İstanbul: İletişim Yayınları) 2011]
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Balanço final [26.12.2011]
Este não foi um ano tão complicado e triste quanto o anterior, mas ainda assim tive uma boa cota de aborrecimentos. Alegrias também, claro, não posso ser tão casmurro e pessimista: doña Natália vai começar o curso superior, doña Helga está bem animada com seus projetos, o povo de São Paulo segue forte e unido. Nunca a literatura foi tão fundamental para encontrar algum descanso da loucura. Li realmente um bocado de coisas boas. O melhor livro ano certamente é “Los enamoramientos”, do Javier Marías. Li várias coisas espetaculares dele, especialmente análises do cotidiano espanhol que me inspiraram e confortaram. Voltei ao Proust, após tantos anos, e acho que termino a releitura do ciclo todo antes do meu aniversário, em março, como havia planejado. Li vários livros do Enrique Vila-Matas (bons, mas que sabem ser irregulares), W.G. Sebald, Jim Harrison (um dos poucos romancistas americanos que li nesse ano, preciso corrigir isso no futuro). Não consegui arrumar tempo para reler o Cervantes, mas li alguns gregos, uns espanhóis que não conhecia (Cercas, Pitol), alguma mitologia (Graves), mais poesia (Pound, Szymborska, Britto, Tavares, Coleridge), mais literatura portuguesa e mais literatura brasileira (nisso fui incentivado por sujeitos como o Marcelo Sahea, o Hugo Crema e a Luciana Thomé, grande czarina do gauchão de literatura - que arbitrei). Foi o ano em que don Caetano Galindo esteve no Bloomsday, deixando-nos sua nova tradução do Ulysses de presente (que em 2012 será lançada com festa). Como no ano anterior, li muitos livros em espanhol (31% do total em 2011). Cometi a imprudência de ler muitos romances policiais em sequência, intoxicando-me de Simenon. Paciência. Ao final foram 147 livros (37 romances, 27 de crônicas ou ensaios, 22 de contos, 15 romances policiais, 10 livros com perfis e relatos, 9 de poesia, 7 histórias em quadrinhos, cartuns ou mangás, 7 novelas, 6 de gastronomia, 3 livros infanto-juvenis, 2 de aforismos, 1 de cartas e 1 de fotografias. Desde que comecei esses registros, em 2007, já são quase 600 títulos. Quase tudo lido com muita alegria. Estou bem satisfeito. Vamos a ver o que 2012 nos reserva. Vale.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

donde se guardan los libros

Esse livro é um mimo que todo bibliófilo folheia encantado, é uma jóia para todos aqueles que amam verdadeiramente os livros. Jesús Marchamalo é espanhol, um jornalista cultural premiado, que já publicou vários livros onde apresenta curtas biografias de escritores, tradutores e filólogos. "Donde se guardam los libros" oferece uma abordagem diferente. Ao invés de falar explicitamente dos seus biografados ele mostra e descreve as bibliotecas deles, fazendo uma curta digressão sobre sua gênese, os critérios de organização, as motivações, as técnicas de manutenção, os temas e histórias que abrigam. São vinte escritores: Fernando Savater, Clara Sánchez, Arturo Pérez-Reverte, Antonio Gamoneda, Enrique Vila-Matas, Gustavo Martín Garzo, Clara Janés, Juan Eduardo Zúñiga, Luis Alberto de Cuenca, Carmem Posadas, Francisco Rico, José Maria Merino, Mario Vargas Llosa, Andrés Trapiello, Soledad Puértolas, Javier Marías, Luís Landero, Jesús Ferrero, Juan Manuel de Prada e Luís Mateo Díaz. Além de transcrever o registro das conversas com eles, de cada um Marchamalo pede que descreva três volumes em particular: um de sua própria produção, um de literatura em geral e um especificamente de literatura espanhola. A edição da Siruela é belíssima, cheia de fotografias e ilustrações. As fotografias recortam a imensidão dos livros (nenhuma das bibliotecas parece ter menos de dez mil volumes, estamos falando de bibliófilos mesmo, maníacos e acumuladores quase todos). Marchamalo dificilmente mostra as estantes em sua totalidade, mas sim pequenas tomadas de detalhes que contam algo da personalidade dos proprietários dos livros. Não há leitor que possa folhear o livro sem sorrir satisfeito, concordando com uma escolha, reconhecendo volumes que também possui, admirando a forma e a textura dos livros. Há quem guarde alguns livros empilhados pelas paredes, sem classificação; há quem compre sempre um novo exemplar quando não encontra algo que está seguro de possuir - perdido entre os guardados; há quem desterre para algum sótão ou porão, de tempos em tempos, volumes que aborrecem ou desagradam; há quem acrescente caixas pelos corredores, contendo tesouros desconhecidos; há quem compre outros apartamentos, outras casas, para ir morar exilado dos livros, pois esses tomaram-lhe todo o espaço vital; há quem distribua pacientemente os volumes para os amigos, os parentes, as bibliotecas públicas. Alguns anotam e rasuram todos os livros que leem, outros zelosamente apenas marcam umas poucas passagens à lápis. Há quem conheça o primeiro livro, o embrião da montanha que agregou-se à ele. A maioria deles acrescenta às estantes artefatos acumulados ao longo da vida: esculturas, brinquedos, relógios, chaves, copos, aparadores, pratos, cinzeiros, postais, carimbos de ex-libris, fotografias, guias de viagem, cartões, mapas, garrafas de bebidas. Alguns se lamentam dos livros esquecidos em viagens, perdidos em mudanças, roubados por amigos cruéis. O livro é pequeno, cada escritor tem pouco espaço para falar de sua relação com os livros, mas o tempo de construção de cada uma das bibliotecas parece congelado nas belas fotografias de Marchamalo (acho que são mais de cem delas). Uma versão digital desse livro, com filmes das bibliotecas e animações com os livros, ao invés das fotografias, seria um desejo autoral possível para os próximos anos, explorando as possibilidades que a tecnologia certamente oferecerá. Cabe dizer que Marchamalo tem um bom blog, que vale uma visita. Bueno. Esse é um livro certo para encerrar o ciclo de leituras do ano, mas ainda tenho tempo de registrar que o único problema desse livro é cultivar a inveja pela fortuna desses sujeitos, lamentar o fato deles terem aqueles livros todos à mão, enquanto nós, os leitores, não os temos, não da mesma forma e quantidade, por maior que seja cada uma de nossas coleções de livros. Impossível mitigar essa cobiça. Vale. [início: 11/11/2011 - fim: 20/12/2012
"Donde se guardan los libros: Bibliotecas de escritores", Jesús Marchamalo, Madrid: ediciones Siruela (coleção El Ojo del Tiempo / Fundación Germán Sánchez Ruipérez) (1a. edição) 2011, brochura 16x24, 223 págs. ISBN: 978-84-9841-609-1
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domingo, 18 de dezembro de 2011

poemas de wislawa szymborska

Esqueci do Lustra, coloquei o Macau de lado, Uma viagem à Índia se apequenou num ai, Entremilênios mal deixou eco, n.d.a. perdeu seu brilho, Terceira sede parece bobo, A balada do velho marinheiro deixou de ecooar forte em minha memória. Tudo o que li de poesia nesse 2011 repentinamente ficou pálido e sem viço. Claro, estou exagerando, há vezes que sou mesmo um cabotino teatral demais, mas de qualquer forma esses poemas de Wislawa Szymborska (que ganhou o prêmio Nobel de 1996) são estupendos, seminais, assombrosos. Cousa de gênio. Li e reli, mostrei aos amigos. Esse é o teste definitivo. Quando você não fica com vergonha de mostrar ou declamar um poema para os amigos é porque está seguro que não vai passar por um bobo sentimental. Nada que eu escreva emula, ainda que parcialmente, o prazer de encontrá-los pela primeira vez, pequenas jóias, pequenas construções, recolhos de palavras simples que escondem uma potência dos diabos. A tradutora destas maravilhas, Regina Przybycien, selecionou poemas entre toda a produção de Szymborska, desde os do distante 1957 até os mais recentes, de 2002. Ela assina também um pequeno prefácio biográfico. A edição inclui as versões originais dos poemas. Com isso esse livro poderá ser também utilizado para fins didáticos, por aqueles que querem se familiarizar com o polonês. Nelson Ascher assina a orelha do livro, com um texto conciso e forte. Se é para recortar algo do livro escolho esse: "As três palavras mais estranhas. Quando pronuncio a palavra Futuro, / a primeira sílaba já se perde no passado. / Quando pronuncio a palavra Silêncio, / suprimo-o. / Quando pronuncio a palavra Nada, / crio algo que não cabe em nenhum não ser. /" [início: 14/12/2011 - fim: 18/12/2011] 
"Poemas", Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, São Paulo: editora Companhia das Letras (1a. edição) 2011, brochura 14x21, 165 págs. ISBN: 978-85-359-1957-8

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

macau

Li esse pequeno livro de poemas por indicação de don Caetano Galindo. Li há tempos, ainda na segunda metade de setembro, mas só agora me atrevo a registrar algo. Nesse meio tempo li os poemas novíssimos brasileiros compilados por Claudio Daniel, li o Lustra, do Ezra Pound, li o Uma viagem à Índia, do Gonçalo Tavares, e os resenhei de pronto, quase sempre, mas o pequeno livro do Britto teimava em não me oferecer uma abertura, um gancho para encaixar minhas idéias sobre ele. Mas o ano está a terminar e é tempo de colocar a casa em ordem. Vencedor do prêmio Brasil Telecon de poesia em 2004, "Macau" enfeixa quatroze poemas produzidos na virada do milênio, entre 1998 e 2003. São poemas curtos, econômicos, mas de uma potência que derruba o leitor vagabundo, que não se concentra nas estruturas, nas construções e propostas do autor. As imagens, as situações descritas, as metáforas, tudo aquilo que torna a boa poesia sempre um nocaute, sempre um assombro, encontramos distribuídos sem parcimônia por todo o livro. Britto chega a ser irritante por fazer parecer que tudo o que produz é um feito corriqueiro. Não há temas menores, falta de ritmo, repetições, aborrecimentos, tudo o que encontramos aqui parece ter o poder nos alegrar e surpreender. Grande livro. [início 17/09/2011 - fim 30/09/2011]
"Macau", Paulo Henriques Britto, São Paulo: editora Companhia das Letras (2a. edição) 2006, brochura 12,5x18,5, 80 págs. ISBN: 85-359-0694-0

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

uma viagem à índia

Dos livros que já li de Gonçalo M. Tavares este é o mais convincente. Sobre "O senhor Brecht" e "Biblioteca" não há mais o que falar, me pareceram apenas exercícios estilísticos, onde mal se lê/vê e se aceita os atributos que eventualmente o texto alcança. Acho que até os chamei de maçantes, pois me entediaram do começo ao fim. Paciência. Apesar dessa inevitável prevenção inicial li "Uma viagem à Índia" com um prazer indistinto. Nos dez cantos de "Uma viagem à Índia" acompanhamos um português chamado Bloom por diversas aventuras, cujas motivações e consequências emulam principalmente o Camões de Os Lusíadas - com o qual o próprio Tavares indica ter uma "proximidade amorosa", e que oferecem ao leitor instigantes idéias e reflexões. Trata-se de um poema épico bastante honesto. Bloom sai às pressas de sua Lisboa para uma viagem que percorre lugares da Inglaterra, França, Aústria, Índia, encontra o caminho de volta pela França e termina em Portugal (claro, o eterno retorno às origens se repete em toda jornada heróica). Ele procura aprender (e também esquecer) durante essa viagem. É um texto complexo, onde Gonçalo Tavares demonstra sua erudição, fazendo ilações filosóficas, apresentando argumentos e dados, sintetizando séculos de história e literatura européia, contrastando os numerosos encontros da velha Europa (do ocidente) com a ainda mais velha Índia (o oriente), encontros esses fundados na saga portuguesa de Vasco da Gama. Claro, há algo de pretensioso nesse projeto: repetir as sagas, as épicas, as mitologias, os grandes poemas que já contaram o vagar de um homem comum pela história de todo um povo, de toda uma civilização, mas sobre isso o próprio Tavares deve saber que não tem controle algum, pois serão os leitores do futuro que darão alguma relevância e/ou mérito a seu texto. Há quem tenha afirmado que seu texto deve algo ao Ulysses de James Joyce, mas além do nome do personagem, Bloom, não encontro paralelo algum (a não ser a óbvia angústia da influência joyceana, claro). Por outro lado, ao ler a epopéia de Gonçalo Tavares lembrei muito do Omeros, de Derek Walcott, que por sua vez emula aspectos da Odisséia de Homero. Há passagens realmente boas, que li várias vezes. É o tipo de livro que espero voltar a ler, para retomar idéias e impressões. A edição inclui um bom prefácio (assinado pelo decano dos filólogos de Portugal, Eduardo Lourenço) e uma espécie de índice selecionado, um itinerário de leitura ou mapa dos cantos (que o autor chamou de Melancolia Contemporânea), onde os temas principais de cada canto são indicados graficamente, possibilitando ao leitor voltar rapidamente a cada um deles após a primeira leitura. Curiosamente o último desses termos é "Tédio" (o herói de Tavares alcança no final um tédio definitivo - que para mim é a morte, mas é possível que um outro leitor entenda isso de forma diferente), mas esse é um livro que em nenhum momento entedia ou aborrece o leitor. [início 26/11/2011 - fim 13/12/2011] 
"Uma Viagem à Índia", Gonçalo M. Tavares, São Paulo: editora Leya (1a. edição) 2010, brochura 13,5x20,5, 480 págs. ISBN: 978-85-62936-41-8 [edição original: Lisboa: editorial Caminho, 2010]

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

coisa de amador

Jornalista, ilustrador e editor de arte (e com uma indissimulada alma roqueira) Paulo Chagas trabalha em Santa Maria já há tempos. Algo de sua produção plástica pode ser acompanhada no Flickr e também em um blog, o Pomada Elétrica, onde ele alterna bom humor e algum sarcasmo. Além de seu trabalho feito para jornais eu conhecia as ilustrações que ele fez em parcerias literárias com o Márcio Grings, o Eduardo Macedo e o Diomar Konrad. Recentemente ele decidiu que era hora de publicar um trabalho solo e o resultado é "Coisa de amador". Chagas reuniu de seus guardados algumas histórias em quadrinhos, selecionou cousas divertidas de seus sketchbooks, acrescentou histórias novas e produziu uma narrativa que amarra todo o material. É um livro francamente confessional, intimista e biográfico, um convite de entrada para o mundo de influências, laboratório de idéias e playground  das horas vagas frequentado pelo Chagas. O livro funciona como uma espécie de portfolio dos quadrinhos e desenhos dele. Ele mesmo, em uma das orelhas do livro, cita algumas de suas referências: Disney, Sakai, Pazienza, Moebius, Crumb e Angeli, mas eu vi um Art Spiegelman escondido ali (menos no traço que na mordacidade das histórias). Vamos a ver se um dia desses ele esquece as ironias e nos apresenta um segundo volume, talvez um "Coisa de profissional" (dos bons, que ele é). [início/fim: 03/12/2011]
"Coisa de amador", Paulo Chagas, Santa Maria: editora Manuzio (edição do Autor: Barco a Vapor) (1a. edição) 2011, brochura 20x26, 64 págs. ISBN: 978-85-912821-0-4

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

asterios polyp

Não tenho problema algum em ler graphic novels ou histórias em quadrinhos de vez em quando. Elas são divertidas, relaxam o cérebro, oferecem algum exercício não convencional. Talvez a única diferença entre essa minha cinquentona encarnação e aquela de minha meninice é que agora posso comprar qualquer gibi, qualquer revistinha, praticamente na hora que quiser, sem ficar contando o dinheiro suado do meu pai (ou do meu mesmo, depois dos quinze). Começo assim, confessional e cabotino, pois o velho curandeiro de Viena já nos ensinou que poucas coisas além das que aprendemos a gostar na infância tornam-se realmente relevantes na vida adulta. Paciência. Mas o que dizer dessa graphic novel? Bueno. Um sujeito precisa ser um bocado condescendente para encontrar algo em "Asterios Polyp" além da diversão ligeira que até uma honesta revista artesanal alcança provocar às vezes. Claro, Mazzucchelli ganhou prêmios e foi elogiado por críticos mundo afora, sabe desenhar, domina técnicas de ilustração, tem senso de ritmo e movimento, não esconde sua inspiração direta em poderosos mitos gregos, e editou um livro com muito apuro e correção, mas o que o leitor encontra é uma historieta de amor bem esquemática e rasa. Não há desafios estéticos (a um artista plástico contemporâneo só resta rir das exemplificações canhestras de Mazzucchelli). Os personagens são caricacturais ao extremo, os sentimentos e estados de ânimos deles sempre apresentados como se o leitor fosse incapaz de entendê-los ou antecipá-los através dos diálogos ou da narrativa. O desfile de questões moderninhas: dicotomias, culpa mal elaborada, a incomunicabilidade intrínsica do homem, o dualismo, a oposição de contrários que afinal se complementam, tornam a leitura apenas um exercício de paciência, principalmente porque o texto é de uma obviedade sem fim. Já sabemos o que a história vai oferecer, mas o ordálio precisa ser acompanhado até o fim. [início 19/10/2011 - fim 21/10/2011] 
"Asterios Polyp", David Mazzucchelli, tradução de Daniel Pellizzari, São Paulo: editora Companhia das Letras (1a. edição) 2011, brochura 19,5x26, 344 págs. ISBN: 978-85-359-1866-1 [edição original: New York: Pantheon Books (Randon House Inc) 2009]

domingo, 11 de dezembro de 2011

e depois

De Natsume Soseki já resenhei aqui três bons livros: "Eu sou um gato" (seu livro de estréia, de 1905), "Kokoro" (um de seus últimos, de 1914) e "Sanshiro" (publicado em 1908). "E depois" é de 1909, faz parte de uma trilogia que começa com "Sanshiro" e termina com "Mon", uma trilogia onde Soseki discute as transformações (rápido crescimento econômico, reforma agrária, industrialização e modernização, com forte impacto nas tradições, convenções e relações sociais) pelas quais o Japão passou do final do século XIX para o início do século XX. Em "E depois" Soseki nos apresenta Daisuke, rapaz que recebeu a melhor educação possível, é poliglota e bom leitor, interage com diplomatas estrangeiros, homens de negócios importantes, amigos de sua família, mas não encontrou alguma ocupação fixa, vivendo das mesadas generosas que recebe de seu pai. Ele leva uma vida reflexiva, mantém elípticas e cifradas (no sentido que nunca expõe verdadeiramente suas opiniões) com seu irmão, sua cunhada, seus amigos. Seu pai tem interesse que ele trabalhe nos negócios da família e se case com a filha de um rico produtor rural. Daisuke reencontra dois de seus grandes amigos dos tempos de escola. Um deles, Hiraoka, casou-se com uma garota, Michiyo, por quem ele, Daisuke, teve algum interesse, mas não atreveu-se a avançar. Esse amigo envolveu-se em uma confusão financeira e teve de abandonar sua promissora carreira adminstrativa, tornando-se um rancoroso jornalista. O outro, Terao, tinha planos de tornar-se um escritor importante, mas tem dificuldades em publicar seus textos e reclama reiteradamente do pragmatismo da sociedade japonesa de seu tempo e das bruscas transformações sociais que vivenciam. Daisuke sabe que é incapaz de prover seu próprio sustento, mas também não se vê ocupando-se dos mesmos afazeres mundanos de seus amigos. Ao tentar conciliar suas dificuldades financeiras com aquelas de seus dois amigos, conseguindo empréstimos com sua cunhada e seu irmão, Daisuke acaba percebendo-se apaixonado pela mulher de seu amigo e que essa paixão é correspondida por ela. Nos termos em que o personagem imagina, essa relação é claramente algo difícil de ser aceito pela sociedade japonesa em que vive. Dividido entre suas obrigações morais e o desejo, sua responsabilidade filial e a individualidade, Daisuke antecipa todos seus movimentos, suas palavras, as reações das pessoas com quem interage, como se a vida pudesse ser controlada e racionalizada. Sua mente ansiosa o impede de interpretar corretamente o alcance de seus atos, as consequências de suas decisões. O título já sugere que um enredo como esse pode ter múltiplos desfechos, menos manter-se indefinidamente congelado (e essa seria a principal metáfora de Soseki no livro: ele parece insinuar que o Japão que se ocidentaliza - e não perde a essência, as tradições - é incapaz de antever as consequências sociais da rápida transformação da sociedade). Como na vida real, as coisas não se resolvem sozinhas, o tempo não costuma afastar para sempre aquilo que nos aflige e assusta. Soseki é mesmo um escritor poderoso. [início 28/10/2011 - fim 11/12/2011] 
"E depois", Natsume Soseki, tradução de Lica Hashimoto, São Paulo: editora Estação Liberdade (1a. edição) 2011, brochura 16x23, 280 págs. ISBN: 978-85-7448-201-9 [edição original: Sorekara (それから) Tokyo, 1909]

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

lustra

Quando soube que havia no mercado uma edição de Lustra encomendei o livro imediatamente. Como postergar a leitura e o encontro dos poemas de Ezra Pound, sempre tão seminais e inspiradores? Encontrá-los tão bem apresentados nessa edição bilíngue da Annablume foi um inevitável prazer. (As coisas da Demônio Negro sempre são boas, já havia me alertado o Sahea). Li o livro com vagar, quase escandindo os poemas, me esforçando para acompanhar as escolhas do tradutor, Dirceu Villa, que preparou essas maravilhas para uma dissertação de mestrado, defendida em 2004. Uns poucos poemas desse livro haviam sido traduzidos para o português anteriormente. Além dos poemas encontramos no livro uma generosa apresentação biográfica e poética de Pound (assinada pelo tradutor). Villa inclui também notas explicativas para cada um dos poemas, onde o leitor curioso pode aprender a gênese do trabalho de Pound, suas influências e método. Trabalho muito bem feito. "Lustra" foi publicado em 1916, quando Pound tinha um pouco mais de trinta anos, já respeitado e temido. Mas apesar da versão original ter quase cem anos os poemas parecem ter o dinamismo e vigor dos dias que correm. Não há frouxidão, auto-indulgência, choramingas, confessionalismos bobos, aos quais hoje muitos poetas, tanto jovens quanto já vetustos, recorrem. Claro, não se espera que todo poeta tenha a erudição e a facilidade para aprender e entender línguas, operar com elas, tenha a imaginação poderosa e o rigor estético dele, mas um poeta inculto normalmente aborrece o leitor com superficialismos, com apelos canhestros por emoção, com metáforas bestas. Gostei de tanta coisa nesse livro. Gostei de ler "And yet everyone speaks evil of death", "I have detested you long enough" (de sua tentativa de pacto com Whitman), "let us take arms agains this sea of stupidities", "It rests me to be among beautiful women, why should one always lie about such matters?", "Save this damm'd profession of writing". Eram esses os estímulos que eu precisava para voltar aos gregos, voltar aos mitos. Realmente, que belo livro! [início 25/10/2011 - fim 01/12/2011] 
"Lustra", Erza Pound, tradução de Dirceu Villa, editora Annablume (selo Demônio Negro), 1a. edição (2011), capa-dura 16,5x23,5 cm, 360 págs. ISBN: 978-85-63198-07-5 [edição original: Lustra (London: Elkin Mathews - The Bodley Head ) 1916]

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

ella era hemingway. no soy auster.

São duas argumentações, duas idéias, bem curtas e auto-referentes, que Enrique Vila-Matas decidiu por alguma razão publicar na forma de uma pequena plaquete (chamar de livro seria um abuso, claro) e não incluir em uma coletânia de ensaios e crônicas. Na primeira, "Ella era Hemingway", o narrador - do que pode ser um curto ensaio, uma crônica ou um conto - descreve seu assombro com sua própria incapacidade de entender um conto de Hemingway (e entender, sobretudo, porque este afirmava ser "Cat in the rain" o melhor conto já escrito). Na segunda argumentação, "No soy Auster", o narrador (que talvez seja o Vila-Matas real) fala sobre o que o aproxima e o que o distingue de Paul Auster, escritor americano que certamente o Vila-Matas real admira (há um vídeo muito bom no YouTube onde ambos são entrevistados, onde aprendemos que ambos compartilham muitas obsessões e vivências). Não há o que acrescentar. As duas histórias apresentam ao leitor como Vila-Matas opera: tudo pode ser ficcionalizado, tudo pode alcançar ter valor literário, tudo pode ser discutido e argumentado. Vamos em frente. [início/fim: 06/12/2011]
"Ella era Hemingway. No soy Auster", Enrique Vila-Matas, Barcelona: ediciones Alfabia, 3a. edição (2011), brochura 10x14 cm, 32 págs. ISBN: 978-84-612-4973-2 [edição original: Alfabia (Barcelona) 2008]

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

a culpa é do padre 2

Vamos a ver. Penso que existem dois tipos de livros. Aqueles que nos dão genuíno prazer e aqueles que teimam em nos aborrecer. Quando li “A culpa é do padre”, do Ronaldo Lippold, lançado em meados de 2009, vi logo que ele pertencia ao primeiro grupo. Que livro divertido! E, além de divertido, despretensioso. Pois essa parece ter sido também a opinião de uma legião de leitores. Não apenas a edição original do livro esgotou-se em pouco mais de seis meses como seus leitores, quando encontravam o Lippold por esses pagos afora, invariavelmente costumavam pedir a ele uma nova fornada de suas memórias, seus causos e histórias. Quem conhece o Lippold sabe o quanto ele é elétrico. Enquanto promovia “A culpa é do padre” já matutava uma sequência, motivava seus colaboradores, continuava a escrever. Agora ele decidiu enfrentar o lançamento de um segundo livro, produzindo esse “A culpa é do padre II”. Inclui um tanto de suas outras paixões: dá espaço para sua mulher (a Neneca) a falar da arte de produzir cervejas artesanais, a sua filha para escolher a tipologia dos títulos das histórias, a seu cunhado (o padre) a incluir um de seus contos. Um segundo livro de qualquer escritor não costuma ter vida fácil. Os leitores (sobretudo aqueles que também são críticos) sabem ser infiéis e cruéis. Até autores experientes, seguindo o mesmo roteiro, utilizando a mesma técnica, mantendo o mesmo formato, não tem como prever a reação dos leitores. O leitor irá divertir-se como no primeiro livro? As histórias continuarão líricas e tocantes? Acredito que sim. Claro, os livros têm de se defender sozinhos, mas acredito que elas funcionam, tem algo daquele encanto original, continuam espontâneas, ora provocando o riso, ora partilhando suas recordações e memórias afetivas com o leitor. O Lippold arrisca um tanto mais desta vez. Além de dar um acabamento mais literário aos textos ele incluiu algumas invenções mais sombrias. A vida e a literatura têm dessas coisas. Talvez um escritor deva mesmo seguir seu instinto e não se aferrar às fórmulas fáceis. Acho que esse livro encontrará seus leitores como velhos amigos se encontram, com surpresa e prazer (e quando amigos se encontram não há aborrecimentos). Bom divertimento. [início 29/11/2011 - fim 05/12/2011] 
"A culpa é do padre II: Em busca da cerveja perfeita", Ronaldo Lippold, Santa Maria: editora Manuzio (edição do Autor: Rio das Letras) (1a. edição) 2011, brochura 16x21,136 págs. ISBN: 978-85-65172-01-1

domingo, 4 de dezembro de 2011

la vida descalzo

Encontrei esse pequeno livro durante a última Feira de livros de Porto Alegre. Não me lembro bem se foi nos guardados da Calle Corrientes ou da Sur Distribuidora (sempre capitaneadas, respectivamente, pelos industriosos Miguel Gómez e Enaldo Fernandes, senhores e mascates dos livros). Paciência. "La vida descalzo" é um volume onde encontramos memórias de infância e fotografias em preto e branco (de alguém que podemos identificar com o autor, Alan Pauls, mas nunca se deve fiar completamente em algo impresso). Entretanto o livro oferece algo mais, há também um pouco de ensaística, reflexões e digressões sobre a passagem do tempo (onde o narrador contrasta aquilo que lembra dos dias vagabundos de verão com suas férias mais recentes, menos aventurescas, mais cerebrais e intencionalmente monótonas). O registro intimista do narrador envolve o leitor (coisa fácil, pois quem é que não experimentou com certo assombro os primeiros contatos com o mar?) Os jogos dos amigos francos ou de ocasião, os conselhos do pai - já separado de sua mãe, a curiosidade sobre o futuro dos filhos - sua família de agora, os dias curtos de inverno e longos de verão, alternadamente se confundindo e povoando suas memórias. Ele atribui a amigos os comentários mais duros sobre as diferenças entre o jovem e o homem maduro que frequentam a praia. A mística do cinema e da cultura popular dos anos 1960 também auxiliam o narrador no resgate (ou construção) das lembranças. Proust já havia nos ensinado que o mar sempre nos consolaria dos aborrecimentos da vida. Por isso mesmo um cético como eu não se impressiona tanto com o lirismo da descoberta do mundo mágico dos livros e da leitura experimentada pelo narrador. Artificial demais, me diz o casmurro Guina, que também já foi ao mar e andou descalso pela praia, também já enfrentou a fria aragem salgada e os agressivos raios do sol. O certo seria eu ler antes os romances afamados de Pauls, como Wasabi, O Passado, A história do pranto e A história do cabelo, mas fiquei feliz em ter encontrado antes esse pequeno livro. Interessante mesmo. [início 22/11/2011 - fim 24/11/2011] 
"La vida descalzo", Alan Pauls, Buenos Aires: editorial Sudamericana, 1a. edição (2006), brochura 13x20 cm, 125 págs. ISBN: 978-950-07-2746-4

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

antes das primeiras estórias

Nesse pequeno livro encontramos quatro contos de João Guimarães Rosa, publicados quando ele era apenas um jovem estudante de medicina, no início dos anos 1930. São histórias inventivas, que garantem alguns minutos de divertimento para o leitor curioso, mas nada espetaculares (claro, se um sujeito as ler sem saber que foram produzidas pelo grande Guimarãoes Rosa talvez até desdenhe e ria delas). O rebuscamento do texto, o rico vocabulário (estamos falando de textos que têm mais de oitenta anos) e o exotismo da ambientação das histórias denunciam alguém já muito seguro de sua formação. Umas das histórias foi publicada em "O Jornal" e as outras três na revista "O Cruzeiro", publicações de prestígio dos Diários Associados, o poderoso grupo de mídia comandado por Assis Chateaubriand. Em "O mistério de Higmore Hall", um conto fantástico, gótico, Rosa conta uma história algo previsível de loucura e vingança; "Makiné" é uma história que lembra as invenções amalucadas de Borges, ambientada em uma exótica e selvagem África; Em "Chronos kai anagke", o conto mais interessante, encontramos um jogador de xadrez que alcança um nível em seu jogo que só pode ser debitado à algum pacto demoníaco, mas nem ele nem o leitor podem ter certeza disso; "Caçadores de camurças" é um aborrecido conto de amor e morte, ambientado nos Alpes. Essa edição da Record inclui as ilustrações originais que acompanharam a publicação, assinadas por um sujeito chamado Carlos Chambelland, algumas fotos e um curto prefácio do escritor moçambicano Mia Couto. Ele ficou mais entusiasmado que eu com esses contos. "Antes das primeiras estórias" é o tipo de livro que só deve interessar mesmo aqueles muito curiosos na obra de Guimarães Rosa. [início 22/11/2011 - fim 23/11/2011]
"Antes das primeiras estórias", João Guimarães Rosa, Rio de Janeiro: editora Nova Fronteira, 1a. edição (2011), brochura 13,5x21 cm, 132 págs. ISBN: 978-85-209-2622-2