domingo, 30 de dezembro de 2012

on grief and reason

Esse livro encontrou-me no 12/12/12 e o encantamento provocado pelas idéias de Joseph Brodsky me manteve, até há bem poucos minutos, nesta manhã vagabunda de domingo, penúltimo dia deste 2012, absolutamente "stingless, drowning in honey", imerso em delícias sem fim. "On Grief and Reason" foi publicado em 1995 e reúne 21 ensaios muito bons. Um é de 1978, oito deles são dos anos 1980, doze dos anos 1990. Dois dos ensaios são abertamente nostálgicos. O que abre o livro reúne memórias esparas dos dias de infância e juventude no pós guerra (Brodsky nasceu em São Petesburgo/Leningrado, em 1940). Ele fala de seus primeiros contatos com a lingua inglesa (e com a literatura, cinema e cultura dos não russos), no início da guerra fria. O que encerra é um texto em homenagem a um grande amigo (o poeta e ativista inglês Stephen Spender), escrito uns poucos dias após sua morte. Os demais são ensaios convencionais na forma, transbordantes de erudição, mas escritos também com alguma ironia e bom humor (num inglês que eu não consigo avaliar completamente - menor dos anões que sou - mas que pareceu-me mais que exótico, certamente exuberante, diferente, algo latinizado). Neste conjunto encontramos seu discurso de aceitação do prêmio Nobel (de 1987), assim como textos dirigidos a alunos em cerimônias de formatura (Brodsky foi professor universitário por muitos anos) e aulas magnas de poesia, onde Brodsky discute detalhadamente - linha a linha, palavra a palavra, poemas (de Robert Frost, Rainer Maria Rilke, Thomas Hardy); vários textos longos sobre a experiência de ser poeta, sobre poesia, linguagem, o treinamento desejável à esse ofício e a existência ou não de talento natural (ou de musas inspiradoras); textos políticos - de intervenção política -, nos quais Brodsky reflete sobre o valor intrínsico da liberdade e se contrapõe a opressão. O ensaio que mais gostei é uma espécie de carta, dirigida ao poeta e filósofo Romano Horácio (Quintus Horatius Flaccus). Nele Brodsky explica - ao leitor afinal de contas - as afinidades entre seu estilo e o de Horácio. O texto mais divertido (e cruel) é o de 1978, onde ele conta experiências de uma viagem que fez ao Brasil. Toda vez que eu voltar a encontrar um ufanista delirante, daqueles orgulhosos das singularidades brasileiras, arautos de nossa provável transcendência sobre os demais povos da terra (e como brotam ufanistas assim nestes últimos tempos) lembrarei dos comentários de Brodsky sobre o Rio de Janeiro e sobre o que ele lá viu. Todas as lembranças que tenho de Brodsky são boas. Lembro-me das maravilhas de um outro livro de ensaios seu ("Menos que um", publicado no Brasil em meados dos 1990); de ter encontrado sua casa em Veneza (mas não pude ir a San Michele ver seu túmulo, paciência); de ter conhecido a poesia de Anna Akhmatova, Osip Mandelstam e Marina Tsvetáyeva atráves dele. Enfim, terminar o ano com um livro tão bom foi um presente insuspeitado.
[início 12/12/2012 - fim 30/12/2012] 
"On Grief and Reason: Essays", Joseph Brodsky, Londres: Penguin Books (modern classics), 1a. edição (2011) brochura 13x19,5 cm, 422 págs. ISBN: 978-0-241-95271-9 [edição original: (New York: Farrar Straus Giroux) 1995]
=============================================















Balanço final [30.12.2012]
Esse foi um ano de muitas viagens, algumas alegrias e também, claro, uns poucos aborrecimentos. Doña Natália terminou o primeiro ano de psicologia e está animada com o curso; doña Helga defendou o doutoramento, tomou muitos cavas e começou vários projetos novos; o povo de São Paulo segue bem, com o velho timoneiro Aachnald Severinovich no comando. Temos um novo gato. Leon - o Felpudo juntou-se a Salen, Lilica, Nihan e Kyo. Emagreci um pouco, ma non troppo. Revi amigos do IFUSP que não via há quase 30 anos, em um encontro memorável. Em outra oportunidade revi don Marcelo Racy e don Péricles Turnes, amigos dos bons. Marcelo Tápia me fez uma gentileza das grandes, mostrando-me a Casa de Cultura Guilherme de Almeida e me dando a chance de ter nas mãos um legítimo Ulysses de 1927 (uma reimpressão da primeira edição). Dividi uma noite de conversas sobre James Joyce no FestiPOA (capitaneada pelo Fernando Ramos) com o industrioso Caetano Galindo. Conheci as terras altas de Inhotim, em Brumadinho. Flanei com don Renato Cohen pela São Paulo dos Campos de Piratininga. Fiz uma palestra sobre o tempo e o infinito, para um povo das letras da UFSM, que gostei muito de fazer. Roí várias cordas, espantei uns fantasmas, chutei uns traseiros, diminui minha cota de brigas por bobagens, mas fiquei em falta com um punhado de gente, cousas da vida. Organizei as festividades do décimo-nono Bloomsday em Santa Maria. Já no mundo da literatura, terminei a releitura do Proust antes de completar 51 anos como havia planejado; achei vários Javier Marías novos, principalmente suas crônicas e os contos reunidos; li bastante poesia - mais ou menos o dobro do que costumo ler por ano; diminui a média anual de romances policiais, crônicas e ensaios e graphic novels; li mais livros de contos do que usualmente faço; mantive número de romances, novelas e livros com perfis e relatos dentro da média anual; li vários Ian McEwan e vários Joseph Conrad; descobri o quanto John Cheever é bom. Li vários livros de amigos e conhecidos, sempre um terreno incerto, mas não acho que me afastei de produzir registros realmente objetivos afinal de contas. Li as coisas de James Joyce recém publicadas nesse ano por conta de sua obra estar agora em domínio público. Deixei várias destas novidades para reler no ano que vem. Mantive a média de um terço das leituras dedicadas a originais em espanhol, por supuesto. Li apenas quatro livros em inglês, o mais interessante deles o ensaio sobre a obra de Javier Marías assinado por David Herzberger. Ao final foram 105 livros (31 romances; 18 de contos; 11 de poesia; 11 com perfis e relatos; 8 novelas; 3 de histórias em quadrinhos - graphic novels, cartuns ou mangás; 3 romances policiais, 2 infanto-juvenis, 2 catálogos de exposição; 2 peças de teatro; 1 didático; 1 de cartas e 1 breviário). Como sempre quase tudo foi lido com muita alegria. Esse último livro de 2012, "On Grief and Reason" de Joseph Brodsky completei a septingentésima postagem deste blog, 700 registros cronológicos de minhas leituras desde que comecei a contagem, no início de 2007. Sem pressa em três anos alcanço os 1000 registros, antes dos fatídicos Jogos Olímpicos, logo depois dos desastres da Copa do Mundo de Futebol. Cousa boa. Em 2013 quero recomeçar o Nagib Mahfuz; voltar aos clássicos gregos e latinos, à mitologia, certamente que sim; reler algo do Thomas Mann; ler o Tristram Shandy (traduzido pelo Javier Marías); criar mais coragem e enfrentar ao menos um par de russos; treinar mais meu inglês, talvez com Anthony Burgess ou com o Issac Singer; reler o Cervantes. Vamos a ver. São os livros afinal que escolherão me encontrar em 2013. Vale.
============================================

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

los barcos se pierden en tierra

De Arturo Pérez-Reverte já li vários romances e novelas, principalmente aquelas do ciclo dedicado às aventuras do industrioso Capitão Alatriste. O sujeito tem uma imaginação dos diabos e sabe contar histórias. Mas esse "Los barcos se pierden en tierra" é material com outra vocação, outros propósitos. Trata-se de noventa e cinco artigos publicados em jornal, no XL Semanal, em sua coluna "Patente de corso". Dentre o milhar de artigos que já publicou, desde o início dos anos 1990, Pérez-Reverte fez uma seleção daqueles dedicados aos assuntos do mar, sua grande e confessada paixão. Para aqueles que compartilham com ele este amor ao mar é mesmo um livro maravilhoso. Ele conta coisas que parecem simples, mas que alcançam um registro realmente perene e universal (e que as fazem merecer uma versão em livro, poupando-as do funesto destino daquilo que só é publicado em jornal). Pérez-Reverte conta suas memórias de infância, da leitura dos clássicos de marinharia (Stevenson, Sabatini, Defoe, Conrad e Melville) e histórias em quadrinhos (Tintin sobretudo, mas também das histórias como as de Ivanhoé, de Júlio Verne, da guerra de Tróia, de Ulysses); fala dos velhos marinheiros que o adestraram nas lides do mar; descreve as façanhas e os desastres da história naval de seu país; fala de crimes ecológicos, vazamentos de petróleo, pesca predatória, da falta de educação dos proprietários de barcos; relembra piratas, corsários e bucaneiros; brinca com as diferenças entre espanhóis e ingleses nos assuntos do mar; lembra do quão gigantesco e indomável é o mar, apesar dos homens estarem sempre a confrontá-lo, tolos que são. Mas não há só nostalgia nessas histórias. Ele fala também - com sarcasmo, claro - dos assuntos do dia a dia de seu país (é sempre incrível como certos escritores antecipam - como profetas malditos - os desastres individuais e coletivos de uma sociedade). Há tanto encantamento neste livro que quase tudo parece ter sido escrito mesmo em alto mar, inspirado pela água salgada e pela luz das estrelas. Quase todos artigos têm o mesmo tamanho fixo pela coluna do jornal e são francamente factuais (na medida do possível). Todavia encontramos algumas histórias onde há uma pitada de invenção, como se fossem escolhos de romances pouco ambiciosos que se perderam. Só três histórias são realmente longas (e são mesmo as melhores). Uma é dedicada ao sacrifício inútil a que foi obrigado o almirante Pascual Cervera, quando as últimas possessões espanholas no Caribe foram tomadas pelos americanos, no final do século XIX. Outro a um detalhado censo de suas leituras de juventude. E um último dedicado as mágoas de um velho marinheiro que se encontra preso a um porto, sem poder fazer-se ao mar em um dia de chuvas e ondas fortes. Grande corso das letras é esse Pérez-Revete. 
[início 06/12/2012 - fim 17/12/2012] 
"Los barcos se pierden en tierra: textos y artículos sobre barcos, mares y marinos (1994-2011)", Arturo Pérez-Reverte, Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus (Alfaguara ediciones), 1a. edição (2012) brochura 15x24cm, 368 pág. ISBN: 978-987-04-2511-3 [edição original: Alfaguara España, 2011]

sábado, 22 de dezembro de 2012

torquator

Fiquei sabendo deste livro ao assistir uma mesa-redonda durante a última feira do livro de Porto Alegre. Pois lá Tailor Diniz, Carlos Eduardo de Magalhães e Henry Trujillo debatiam sobre literatura como ferramenta de integração o Brasil e o Uruguai. Conversa boa, daquelas onde aprendemos algo e nos divertimos ao mesmo tempo. Curioso com o assunto resolvi ler "Torquator", romance de estréia de Henry Trujillo, publicado originalmente em 1993. É um romance pequeno, compacto, que tem seu valor. Essa primeira edição em português, bilíngue, da Grua, faz parte de um projeto de divulgação da literatura utuguaia no Brasil (e da literatura brasileira no Uruguai, claro!). Trujillo usa um artifício literário convencional para contar sua história, mas que funciona muito bem. Ele começa seu livro com um encontro casual (no caso em um ônibus, onde um sujeito e uma moça rumam para a fronteira do Uruguai com o Brasil), fazendo os dois transportarem o leitor para a narrativa de uma outra história - contada pela moça -,  que é a que importa afinal de contas. Nessa história sabe-se que uma garota chamada Yolanda vive um situação miserável, cuidando da mãe paraplégica e já algo senil. Ela passa a receber cartas misteriosas de um sujeito que assina Torquator, cartas que não explicitam seu objetivo. Os desdobramentos da história tornam a vida de Yolanda ainda mais terrível, envolvendo-a em uma trama labiríntica. Pode-se ler esse livro como um romance policial mas Trujillo alcança um registro um tanto mais poderoso e cerebral. O livro é sofisticado na medida em que não soa artificial, nem fantasioso. A linguagem é coloquial sem ser caricata, percebe-se que o autor deve ter trabalhado um bocado para chegar a esse refinamento. O final é aberto. Os personagens parecem duplos de si mesmos. O leitor pode entender as ilações do autor e interpretá-las de várias formas. De qualquer forma não faz falta um desfecho objetivamente inquestionável. Ok. Todavia, como tenho ainda algum zê-lo pela ciência, não posso deixar de registrar aqui que Trujillo (ou seu personagem, que pode errar mais que o autor, sem que isso o incrimine, afinal de contas) erra ao mencionar como de Galileu uma frase que na verdade é de Arquimedes. Enfim, acho que é o caso de procurar outros livros dele no futuro. E vamos em frente.
[início 02/11/2012 - fim 04/12/2012] 
"Torquator", Henry Trujillo, tradução de Pablo Cordelino Soto e Walter Carlos Costa, São Paulo: editora Grua, Montevidéu: editorial Yaugurú (colección Boca a Boca #2), 1a. edição (2012) brochura 14x21cm, 179 pág. ISBN: 978-85-61578-25-1 [edição original: Torquator (Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental - colección “Lectores”) 1993]

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

get jiro!

"Get Jiro!" é uma história em quadrinhos muito divertida mas, claro, totalmente nonsense, amalucada. Anthony Bourdain (em parceria com Joel Rose) criou uma história onde encontramos gastronomia, orientalismo, artes marciais, sociologia selvagem e exercícios de futurologia. Me parece que se trata de uma versão em formato mangá de um dos capítulos mais divertidos de "Ao ponto", o livro autobiográfico mais recente de Bourdain, que comentei aqui no ano passado. Pois naquele capítulo (heróis e vilões) ele apresenta um sarcástico censo dos chefs e críticos de gastronomia contemporâneos (tanto da Europa quanto dos Estados Unidos), não poupando praticamente ninguém de sua língua afiada e estilo demolidor. O herói de Bourdain em "Get Jiro!" é um talentoso chef oriental que se estabelece na periferia de uma Los Angeles futuristica e hedonista, onde a culinária (e a comida, a alimentação, enfim, toda a cultura gastronômica) é o único prazer que estimula de alguma forma as pessoas (de qualquer grupo social). Nesta sociedade os grandes chefs são como mafiosos, senhores da guerra, líderes de famílias que controlam cada região da cidade. Bourdain cria dois chefs caricatos ao extremo. Uma é Rose, representante de uma espécie de um terroir radical, onde apenas produtos locais devem ser utilizados na culinária. O outro é Bob, um espécie de herdeiro da refinada alta cultura gastronômica de nossos dias. Enquanto os dois grandes chefs lutam pelo controle da cidade o herói de Bourdain, Jiro, mantém seu pequeno sushi bar, sempre atento a forma correta de apresentar seus pratos e zeloso do comportamento de seus clientes. Ambos querem atraí-lo para seus feudos, mas ele prefere contiuar independente. A história é mais ou menos previsível: um herói solitário que se rebela contra dois grupos rivais, numa luta do bem contra o mal, mas é realmente divertida. Deve algo também aos irônicos filmes de Quentin Tarantino, onde a violência funciona como ferramenta de análise sociológica. Seguramente é o tipo do livro que vale o tempo investido pelo leitor.
[início 02/12/2012 - fim 12/12/2012] 
"Get Jiro!", Anthony Bourdain e Joel Rose (roteiro), Langoon Foss (arte), José Villarrubia (colorista), New York: DC Comics (Vertigo), 1a. edição (2012) capa-dura 17,5x26,5cm, 160 pág. ISBN: 978-1-401-22827-9

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

memória líquida

"Memória líquida" é uma pequena jóia, que enfeixa trinta poemas fortes. Mas como eu cheguei a esse livro? Certamente os caminhos que os livros fazem para nos encontrar sempre são sinuosos e surpreendentes. Pois foi por um lance de sorte conheci o poeta Majela Colares na última feira do livro de Porto Alegre e ele, generoso, presenteou-me com esse pequeno livro (foi um outro poeta, o bom Romar Beling, quem nos apresentou, Evoé! - já contei como foi que isso aconteceu em um outro post, sobre o Giacomo Joyce). Li os poemas aos poucos, como gosto de fazer, sem me preocupar com a ordem deles, e sempre com renovado prazer. Não é nada muito explícito, mas percebe-se que Majela é um leitor disciplinado, que acumula, reflete e posteriormente destila o que leu, plasmando algo disto em seus poemas. Os poemas tem formas variáveis, quase exercícios de destreza, como se Majela Colares estivesse a nos ensinar as possibilidades que os versos oferecem ao bom artície. Cinco dos poemas são inspirados em telas de Vicente do Rego Monteiro, uma homenagem de Colares por ocasião dos quarenta anos de morte do premiado artista plástico recifense (Majela é cearense, mas está radicado no Recife há vinte anos). O livro inclui uma introdução assinada por André Seffrin. Ele fala algo sobre as influências de Majela e sua respeitável produção poética, que já alcança uns dez livros. Gostei das brincadeiras com o "internetês", com o uso da linguagem em múltiplos e inventivos registros. Vou procurar mais coisas deste sujeito. 
[início 02/11/2012 - fim 04/12/2012] 
"Memória Líquida", Majela Colares, Rio de Janeiro: Confraria do vento, 1a. edição (2012), brochura 12x17,5 cm, 78 págs. ISBN: 978-85-60676-43-9

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

b*****

No Moby Dick Herman Melville faz suas personagens empreenderem a perseguição de um Leviatã. Em B***** Luciano Bitencourt faz algo parecido, mas sua Moby Dick não é um poderoso e mítico cachalote branco, mas sim a miríade de formas do sexo feminino (o escultor Jamie McCartney fez recentemente algo similar no seu The Great Wall of Vagina). A história que se narra não é linear (embora a forma não seja o mais importante no livro), nem seus personagens previsíveis. Talvez a pretensão do livro seja apenas contar uma boa história de amor, sem artificialismos ou modismos bestas (disso os consumidores de ficção contemporânea brasileira já estão fartos). As divagações da protagonista, em coma em um leito de hospital, lembram Leite derramado, do Chico Buarque, e Quase memória, do Carlos Heitor Cony. Acontece que na história de amor de Luciano Bitencourt o sexo é arrebatador, convergente. Como ele não é o tipo de sujeito que se conformaria em descrever, por exemplo, A origem do mundo, como um quadro que retrata o “sexo de uma mulher” (estou seguro que ele tampouco usaria “genitália”, ou “vulva”, ou “vagina”, ou mesmo “órgão sexual feminino”) em seu livro ele fez uma espécie de censo de todas as acepções dicionarizáveis ou não para “sexo”. Por fim ele optou por chamar seu livro de B*****, mas talvez ele devesse chamar de Boceta de uma vez e ver o que o público leitor acha. Há ciência e arte nesse divertido livro (o primeiro de uma prometida trilogia, já se sabe).
[início 27/11/2012 - fim 29/11/2012] 
"B**** (Boceta)", Luciano Bitencourt, São Paulo: Karina Gonçalves Ag. Notícias, 1a. edição (2012), brochura 12,5x18 cm, 155 págs. ISBN: 978-85-66285-00-0

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

noturnos

Comprei esse livro por acaso. E que boa surpresa arrumei para mim mesmo! São cinco contos muito bons. No primeiro um velho e pragmático crooner americano, hospedado em Veneza, convida um jovem músico a acompanha-lo em uma serenata para sua mulher. O rapaz e o crooner conversam um bocado sobre amor e afeto, sucesso e música, sobre a relação de homens com as mulheres. No segundo um sujeito, professor de línguas, que viaja pelo mundo em função de seu trabalho, é convidado para ficar hospedado na casa de uns amigos, colegas de quem era muito íntimo nos tempos da faculdade. O reencontro, algo amalucado, mistura mágoas e expectativas. No terceiro conto um jovem músico resolve passar uma temporada no interior inglês, na pousada/restaurante de sua irmã mais velha, trocando a oportunidade de alguma paz para trabalhar em suas composições e eventuais ajudas na cozinha. Ele conhece um casal de cantores suiços de meia idade, com quem troca algumas experiências. No quarto conto um músico respeitado profissionalmente mas que ainda não alcançou o sucesso que acredita merecer é convencido a fazer uma cirurgia plástica. Na clínica onde a operação é realizada ele conhece uma mulher muito famosa e espirituosa, que de alguma forma apresenta a ele as nuances do mundo do show business que ele desconhecia. Na última das histórias Ishiguro faz um músico contar a história de um jovem colega que foi enfeitiçado por uma espécie de anti-musa, uma mulher que após um bloqueio musical parece vampirizar jovens músicos para descobrir como eles continuaram seus estudos, apesar das dificuldades. Em todas as histórias a experiência estética da música domina a narrativa. Em todas elas o leitor encontra uma dificuldade de comunicação, como se os personagens conseguissem apenas se expressar através da música que produzem e não por meio da vida em si. O que eu entendo como dificuldades de comunicação se manifesta nas lições de moral que personagens impõe aos demais, na raiva contida que se acumula neles, nas reflexões que cada um tem de suas carreiras, em contraposição a de seus amigos ou colegas. Encontramos também digressões sobre as diferenças entre as gerações, sobre como cada pessoa (ou geração) lê o mundo de uma forma distinta das demais. Impressionante como um escritor pode ser capaz de fixar em livro sentimentos tão sutis e poderosos.
[início 05/12/2012 - fim 06/12/2012] 
"Noturnos: histórias de música e anoitecer", Kazuo Ishiguro, tradução de Fernanda Abreu, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm, 210 págs. ISBN: 978-85-359-1636-2 [edição original: Nocturnes: Five stories of music and nightfall (Londres: Faber and Faber) 2009]

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

nação crioula

Publicado originalmente em 1997, "Nação crioula" venceu naquele ano o Grande Prêmio de Literatura da Radio e Televisão Portuguesa. José Eduardo Agualusa fez posteriormente algumas correções no texto e o publicou aqui no Brasil, por sua editora, a boa Língua Geral. Neste livro (um movimentado romance epistolar e histórico) Agualusa toma de empréstimo um personagem de Eça de Queirós chamado Fradique Mendes. No livro "Correspondência de Fradique Mendes", de 1900, Eça conta (inventa talvez seja o termo mais apropriado) a vida de Carlos Fradique Mendes, um sujeito que lhe impressionou muito e de quem foi amigo até sua morte, em 1888. Fradique Mendes é inteligente e sofisticado, viajante curioso sobre as relações entre os povos, latinista e refinado conhecedor da literatura de sua época. Eça inclui em seu livro uma série de cartas recebidas e enviadas por Fradique, através das quais o leitor pode ter uma idéia do grande homem que ele era, além de saber das opiniões elevadas que seus contemporâneos portugueses tinham dele. Claro, tudo é inventado, ficcional. Agualusa, por sua vez, acrescenta com seu livro alguns capítulos à biografia literária deste personagem. Ele também usa o artifício das cartas (como se as de seu livro pertencessem a um conjunto que não havia chegado às mãos de Eça, num jogo metaliterário interessante). Agualusa cria episódios de Fradique Mendes na África (sobretudo Angola), no Brasil, em Portugal e na França. Através das cartas ele viaja com o leitor para o mundo cruel da escravidão nas colônias portuguesas, no final do século XIX. Primeiro ele faz Fradique Mendes ir a Luanda, um viajante sem rumo ou propósito definido. Lá conhece Arcénio do Carpo, um rico comerciante e Ana Olímpia, uma jovem viúva (que havia sido escrava de um dos homens mais ricos da Luanda colonial e tornou-se herdeira de seus bens, inclusive seus escravos). Através de seu personagem Agualusa descreve a complexa sociedade escravocata daquela região e seus bizarros personagens. Fradique Mendes se apaixona pela jovem viúva, mas não é correspondido, continua suas viagens, rumo a Portugal e França. Ao voltar a Luanda descobre que Ana Olímpia voltou a ser escrava (de um irmão de seu marido, que havia voltado para Angola após anos exilado no Brasil). O livro ganha ritmo de aventura, com perseguições, assassinatos, fugas mirabolantes. Fradique Mendes e o filho de seu amigo Arcénio do Carpo fogem da África após libertar Ana Olímpia. Se estabelecem no nordeste brasileiro, onde Fradique torna-se um senhor de engenho. Agualusa contrasta o estatuto da escravidão portuguesa nos dois continentes (no Brasil, sua ex-colônia, e na África, àquela época explorada como já se fazia desde o século XVI). Em algum momento Fradique Mendes engaja-se no movimento abolicionista, onde faz amizade com José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e Luiz Gama. Perseguido por pistoleiros ele viaja primeiro ao Rio de Janeiro, depois a Paris e Londres para divulgar o movimento de libertação dos escravos em curso no Brasil, sem saber que havia gerado um filho, brasileiro, com Ana Olímpia. Em uma espécie de coda ao livro, a última das cartas é de Ana Olímpia, endereçada a Eça de Queirós, onde ela dá detalhes da vida de Fradique nos tempos de Angola e no Brasil, justificando o porquê destas coisas terem ficado de fora do livro original de Eça. Bom livro afinal de contas.
[início 27/11/2012 - fim 29/11/2012] 
"Nação crioula: A correspondência secreta de Fradique Mendes", José Eduardo Agualusa, Rio de Janeiro: editora Língua Geral (coleção Ponta de lança), 1a. edição, revista pelo autor (2011), brochura 12x18 cm, 202 págs. ISBN: 978-84-60160-71-6 [edição original: (Lisboa: TV Guia Editora) 1997]

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

escenas de la vida rural

Em "Escenas de la vida rural", publicado originalmente em 2009, Amos Oz narra oito histórias curtas, oito contos curiosos, ambientados em um fictício vilarejo das montanhas de Israel, Tel Ilán. Cidade em nada aparentada à Bat Yan que ele nos apresenta no bom "El mismo mar", livro dele que li recentemente. Os personagens principais de cada história fazem curtas aparições nas demais, tornando o livro um mosaico de sentimentos, de registros de estados de alma, de memórias, distintos entre si. A cidade parece estagnada, com uma população já velha, de pessoas apegadas a um passado de lutas e dificuldades, oprimidos pela história (os nomes das ruas de das praças) e antepassados (os valorosos pioneiros fundadores). Os protagonistas são sujeitos quase sempre sem laços de família (ou a ponto de romper estes laços). As histórias giram quase sempre em torno da posse de uma casa, da compra e venda de uma casa, da eventual reforma ou demolição de uma casa (talvez uma espécie de metáfora ou juízo velado de Oz para o que acontece naquela região há tempos). Há sempre algo de inusitado ou maluco nas histórias, como se elas fossem inicialmente realistas, mas subitamente se tornassem fruto de um sonho, delírio ou coisa parecida. Os personagens quase sempre estão esperando algo que não se materializa, não se concretiza. Os nomes de sete dos oito contos são como códigos para o que seguirá: Herdeiros, Parentes, Escavam, Perdidos, Esperam, Estranhos, Cantam. Já o último conto (Em um lugar distante em outro tempo) parece descrever o futuro distante (ou o passado remoto) de Tel Ilán, num outro tempo, onde é completa a estagnação, inevitável a morte em vida, inexorável a perda das ilusões e sonhos. Os finais, sempre fantasiosos ou surreais, deixam ao leitor a tarefa de interpretar do que tratam exatamente. Duas passagens me chamaram a atenção: na primeira o narrador diz que é possível sempre ver nos adultos a criança que este adulto foi um dia (as vezes esta criança interior está viva, mas muitas vezes esta criança já está morta), na segunda um estudante fala das diferenças entre árabes e israelenses distinguindo a origem da infelicidade de ambos (Oz apresenta uma críptica interpretação sociológica que me parece interessante, mas isso um leitor curioso tem que buscar pessoalmente no livro). Já li coisas melhores dele, mas estas histórias tem lá seu interesse.
[início 15/10/2012 - fim 03/12/2012] 
"Escenas de la vida rural", Amos Oz, tradução de Raquel García Lozana, ediciones Siruela (Nuevos Tiempos), 1a. edição (2010), brochura 14x21,5 cm, 167 págs. ISBN: 978-84-9841-377-9 [edição original:  (תמונות מחיי הכפר  2009)]

sábado, 1 de dezembro de 2012

freud

Se o objetivo é conhecer um tanto da vida ou da obra de Sigmund Freud nada supera a biografia escrita por Peter Gay (Freud: Uma vida para nosso tempo, publicada originalmente em 1988 e traduzida para o português em 1997). Lembro-me dos dias em que Renato Cohen e eu, entusiasmados com a leitura, atuávamos como perfeitos analistas leigos, tendo todos os colegas do laboratório como pacientes eventuais. Há quem idolatre Freud e a psicanálise, o campo clínico que ele desenvolveu no início do século passado, e há quem chegue ao ponto de entendê-lo, juntamente com o conjunto de suas proposições teóricas, como uma fraude completa. Poucos biografias e obras são tão controversas. Pois bem. Um sujeito interessado em Freud tem milhares de fontes para consultar. Uma das mais recentes é esta bem humorada história em quadrinhos, uma biografia descompromissada criada por duas francesas, a psicanalista Corinne Maier e a ilustradora Anne Simon. Claro, hoje em dia é inevitável que mesmo aqueles que jamais leram livros de Freud repitam no cotidiano vários dos complexos conceitos desenvolvidos por ele. Não será uma pequena história em quadrinhos como esta que transformará neófitos em especialistas. Todavia, talvez um leitor curioso encontre aqui o estímulo certo para procurar textos mais robustos. Por fim, não posso deixar de registrar aqui que a tradução é assinada pela multitalentosa Sandra Stroparo, querida amiga, que foi quem mostrou-me este livro pela primeira vez.
[início 27/11/2012 - fim 28/11/2012] 
"Freud: uma biografia em quadrinhos", Corinne Maier, Anne Simon, tradução de Sandra M. Stroparo, São Paulo: editora Companhia das Letras (Quadrinhos na Cia.), 1a. edição (2012) brochura 22x29cm, 56 pág. ISBN: 978-85-359-2161-8 [edição original: Freud: une biographie dessinée (Paris:Éditions Dargaud) 2011]

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

cartas a nora

Nos Bloomsdays que organizo aqui em Santa Maria, desde 1994, a leitura das cartas pornográficas de Joyce sempre alcança muito sucesso. Sempre deixo à mão a tradução de Mary Pedrosa ("Cartas a Nora Barnacle", de 1982, editada pelos industriosos Massao Ohno e Roswitha Kempf) ou a edição portuguesa da Hiena ("Querida Nora!", de 1994, cuja tradução é assinada por Carlos Valente e inclui comentários muito bons da biógrafa de Nora, Brenda Maddox). Agora certamente terei de incluir algo novo no balaio dos livros do próximo Bloomsday. E que belo livro! Sou mais que suspeito com as cousas de James Joyce, mas esta antologia de cartas, publicada recentemente pela Iluminuras está mesmo muito boa. Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante, reconhecidos especialistas em Joyce, assinam a tradução e também uma curta apresentação cada um. O volume inclui as poucas cartas de Nora dirigidas a Joyce que sobreviveram até nós, além de um bom texto, nas orelhas, assinado por Caetano Galindo, que publicou recentemente sua tradução do Ulysses. As cartas correspondem aos poucos períodos em que os dois estiveram afastados. Claro, as cartas realmente pornográficas ou escatológicas são umas poucas, talvez dez em um conjunto de mais de cinquenta, mas elas encantam pela franqueza, se destacam por escancarar o quão forte e nada platônico era o amor de Joyce por Nora, dão conta de como sexo e amor são centrais no relacionamento deles. Desde as primeiras cartas, cartões postais e notas curtas acompanhamos um James Joyce enfeitiçado, realmente apaixonado, ciumento, obsessivo, inseguro e frágil, mas também sem medo de reiteradamente identificar Nora como o descanso de suas loucuras, sem vergonha de contar da necessidade imperiosa de estar próximo dela. O Ulysses é a história mais humana já escrita. E o Ulysses e o Bloomsday nascem no dia em que Joyce se encontrou com Nora pela primeira vez. Nestas cartas vislumbramos um pouco da vida privada de Joyce, temos a chance de partilhar a intimidade dele e de quem foi tão fundamental para que ele engendrasse tudo o que publicou. Certamente Fernando Pessoa nunca teve acesso a estas cartas, mas pensou em coisas assim quando disse que apenas as cartas ridículas são verdadeiras cartas de amor. 
[início 23/11/2012 - fim 27/11/2012] 
"Cartas a Nora", James Joyce, organização, apresentação e tradução de Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante, São Paulo: editora Iluminuras, 1a. edição (2012) brochura 14x21cm, 149 pág. ISBN: 978-85-7321-398-3 [edição original: Selected letters of James Joyce, editor: Richard Ellmann (New York: Vicking Press) 1975]

terça-feira, 27 de novembro de 2012

o último gerente

"O último gerente" é um romance interessante. Izabel Pavesi conta a história de um amor que não se consuma, de uma relação entre colegas de trabalho que parece inevitável, mas não parece contar com a sorte. A autora ambienta sua história no mundo do baixo clero dos bancos, dos funcionários que fazem o corpo a corpo com os clientes e são identificados com o dinheiro, glamour e poder dos grandes bancos, mas não passam de operários explorados num ofício bastante tenso e desgastante. Tudo se passa na época em que inovações tecnológicas modificaram radicalmente o gerenciamento dos bancos, que passaram a dar prioridade aos grandes investidores, deixando o atendimento dos clientes de baixa renda aos serviços de auto-atendimento. Os protagonistas da história são Irina e Rossano, ela uma bancária experiente, porém sonhadora, transferida de uma agência bancária das praias de Florianópolis para São Paulo, ele um gerente industrioso, respeitado pelos colegas, mas algo inseguro no final das contas. Trata-se de um livro bem escrito, com uma certa dose de sensualidade e misticismo. Izabel Pavesi alcança fazer o leitor se interessar pelo dia a dia de suas personagens, cria um par de tramas e aventuras paralelas, guarda algumas reviravoltas para a última parte de seu livro. Livro honesto, divertido.
[início 16/11/2012 - fim 17/11/2012] 
"O último gerente", Izabel Pavesi, Blumenau: editora Nova Letra, 1a. edição (2004) brochura 14x21cm, 157 pág. ISBN: 85-87291-88-2

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

as melhores entrevistas do rascunho 2

Não li o primeiro volume de entrevistas do bom jornal Rascunho de Curitiba, mas este segundo volume estava à mão e fiz por bem experimentar. São quinze entrevistas curtas, numa antologia organizada por Luís Henrique Pellanda (de quem já li dois bons livros: O macaco ornamental, de contos, e Nós passaremos em branco, de crônicas). Pellanda faz um bom trabalho de seleção, pois o grupo de entrevistados é bem heterogêneo: há dois octagenários (Ariano Suassuna e Carlos Heitor Cony), três na casa de seus setenta e cinco (Affonso Romano de Sant'Anna, Silviano Santiago e Vilma Arêas), três na de seus sessenta (Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Brito e Ruy Castro); seis na travessia dos quarenta para os cinquenta anos (Adriana Lunardi, Joca Reiners Terron, Marçal aquino, Miguel Sanches Neto,  Rodrigo Lacerda e Sérgio Rodrigues) e um, Marcelo Backes, com menos de quarenta anos. Não é só a idade que os diferencia, também a ambição dos projetos literários (há quem publicou muito e há os mais parcimoniosos - o que não deixa de ser uma outra forma de ambição); a visibilidade na imprensa e o reconhecimento por público e crítica (alguns são premiados ou já alcançam exposição midiática, outros são mais discretos ou fazem questão disto); o relacionamento com a academia (alguns são também teóricos do ofício literário, professores, outros avessos à ela). Não são registros seminais, extensos ou definitivos, mas uma boa fonte de informações sobre o que pensam quinze bons representantes da literatura brasileira contemporânea sobre o ofício de escrever, sobre o combate diário deles com a palavra escrita. Como em toda antologia são as idiossincrasias do leitor que definem o valor do que é apresentado. Para meu gosto achei sofríveis os registros de Ariano Suassuna e Rodrigo Lacerda, ingênuo o de Adriana Lunardi; maluco demais o de Raimundo Carneiro; além de previsíveis e enfadonhos os de Ruy Castro e Affonso Sant'Anna, Por outro lado surpreendi-me com a erudição de Marcelo Backes; a segurança e entendimento de dois escritores de gerações bem diferentes (Joca Reiners Terron e Silviano Santiago); o comprometimento com o trabalho de Sanches Neto e Correia de Brito (apesar de pertencerem a polos opostos de humor); e as boas ponderações dos demais (Heitor Cony, Marçal Aquino, Sérgio Rodrigues, Vilma Arêas). O volume inclui curtas biografias de cada escritor e entrevistadores, além de um bom índice de nomes e obras, que ajudam o leitor a navegar pelo livro. Enfim, para um sujeito como eu, que não leio literatura brasileira com a regularidade necessária e, confesso, desconheço a obra da grande maioria dos entrevistados, há valor neste livro. Aprendi mesmo um bocado. 
[início 20/11/2012 - fim 25/11/2012] 
"As melhores entrevistas do Rascunho (vol.2)", Luís Henrique Pellanda (org.), com Adriana Lunardi, Affonso Romano de Sant'Anna, Ariano Suassuna, Carlos Heitor Cony, Joca Reiners Terron, Marçal Aquino, Marcelo Backes, Miguel Sanches Neto, Raimundo Carrero, Rodrigo Lacerda, Ronaldo Correia de Brito, Ruy Castro, Sérgio Rodrigues, Silviano Santiago e Vilma ArêasPorto Alegre: Arquipélago editorial, 1a. edição (2012) brochura 14x21cm, 287 pág. ISBN: 978-85-60171-25-5 [edição original: Jornal Rascunho (Curitiba - PR), 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2009, 2010, 2011, 2012]

sábado, 24 de novembro de 2012

poemas de konstantinos kaváfis

Tempos atrás li todos os poemas de Kaváfis em português. Tratava-se de uma boa edição da Odysseus e os 154 poemas conhecidos dele estavam ali traduzidos, lado a lado dos originais, por Ísis Borges da Fonseca. Eu havia acabado de ler o Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell, e estava entusiasmado com as coisas egípcias (a primavera árabe ainda não estava no horizonte). Os poemas de Kaváfis quase sempre envolvem temas históricos e/ou mitológicos que, por sua vez, incluem alguma reflexão plena de erudição. A primavera deste 2012 nos trouxe uma antalogia de poemas de Kaváfis, também bem editada (agora pela Cosac Naify) e assinada por Haroldo de Campos. Nem precisei pensar, logo comprei o livro, seguro que tudo a que Haroldo de Campos dedicou atenção e tempo vale ouro, merece uma consulta. Não me decepcionei. São só quinze poemas (dez por cento da produção original de Kaváfis), mas cada um deles parece tomar de assalto nossa sensibilidade e nos obrigar a pensar. Sou analfabeto em grego, crânio recheado de palha que sou, mas nas edições bilíngues os originais parecem nos estimular à leitura de um jeito mágico, como nos incentivando a alcançar uma compreensão maior. Na edição da Odysseus os poemas estão publicados em ordem cronológica e incluem curtas explicações temáticas da tradutora, Ísis da Fonseca. Já Haroldo deixa os poemas se defenderem sozinhos, o que não é uma má escolha. O livro inclui um kavafiano poema de apresentação assinado pelo próprio Haroldo; um ensaio onde ele detalha seus procedimentos e escolhas de tradução; dois excertos de poetas gregos (Dionysios Solomos e Odysseas Elytis, o primeiro predecessor e o outro sucessor, de Kaváfis) e uma nota final, assinada por Trajano Vieira, dando conta de como foi feita a compilação destes quinze poemas para publicação póstuma (e o porquê de não incluí-los no Entremilênios - volume onde estão reunidos o material inédito em livro à época de sua morte, em 2003). Vejam só, no 16 de agosto do ano que vem se completarão dez anos da morte de Haroldo. Será tempo de relembrá-lo um tanto, com renovado vigor e entusiasmo. Evoé. 
[início 12/09/2012 - fim 22/11/2012] 
"Poemas de Konstantinos Kaváfis", Konstantinos Kaváfis, tradução de Haroldo de Campos, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2012) brochura 16x26,5cm, 64 pág. ISBN: 978-85-7503-827-7 [edição original: Κωνσταντίνος Καβάφης (1863-1933)]

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

bananas podres

Neste livro encontramos cinco poemas longos chamados "Bananas podres". Os dois primeiros são de 1980 e os três últimos de 2010. Ferreira Gullar os apresenta aqui manuscritos, com uma caligrafia muito peculiar,  juntamente com colagens e pinturas produzidas por ele mesmo. Os poemas falam da infância de Gullar em São Luís, no Maranhão; dos fragmentos de memórias da quitanda de seu pai; da geografia da cidade; dos hábitos e costumes da época; das discussões e piadas dos fregueses que ouvia; dos ecos da história do Brasil (e da grande guerra que acontecia na Europa) reverberando no ambiente; enquanto bananas apodreciam no balcão, vagarosas. É um livro que se deixa ler com calma, que evoca as memórias do leitor. Ao mesmo tempo trata-se de um livro de arte. As colagens, os recortes de jornal, as pinturas de Gullar enfeixam os poemas. Maravilha. Haverá mais poesia por aqui, ainda neste ano. Logo veremos.
[início 12/11/2012 - fim 21/11/2012] 
"Bananas podres", Ferreira Gullar, Rio de Janeiro: editora Casa da Palavra, 1a. edição (2011) brochura 25x23cm, 64 pág. ISBN: 978-85-7734-228-0 [edição original: Bananas podres, Bananas podres II (Na vertigem do dia, editora José Olympio, 1980), Bananas podres III, IV e V (Em alguma parte alguma, editora José Olympio, 2010)]

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

epifanias

Para os cristãos epifania é a revelação divina de Jesus, a visita que ele recebeu dos três reis magos, evento comemorado no dia de reis, o seis de janeiro de cada ano. Já secularmente e/ou literariamente falando epifania é uma forma não divina de revelação, a súbita percepção de uma verdade, uma associação inusitada de idéias, um insight ou intuição sobre algo, ainda que não verbalizável. Joyce não inventou o conceito. Talvez o uso da palavra epifania para o conceito tenha sido uma escolha original dele (mas há quem diga que Ralph Waldo Emerson já o havia feito), enquanto Gerard Mankey Hopkins, William Wordsworth, além de místicos, como Hildegard of Binge e Marguerite Porete, também fizeram uso deste procedimento em suas produções poéticas. Joyce apresenta sua teoria pela primeira vez no inacabado "Stephen Hero" (em parte adaptado no romance "Retrato do artista quando jovem") numa passagem na qual descreve a conversa de uma moça com seu namorado e associa a hesitação da moça com a paralisia incorrigível da Irlanda. Joyce passou a  registrar o que ele entendia por epifanias em um caderno (e certamente utilizou parte delas no Ulysses e no Finnegans Wake). Dentre as prováveis 71 epifanias originais produzidas por Joyce descobriu-se os manuscritos de 40, que foram publicadas em livro no início dos anos 1990 [James Joyce: Poems and Shorter Writings, editors: Richard Ellmann, A. Walton Litz and John Whittier-Ferguson (Londres: Faber and Faber) 1991]. Comprei o livro com entusiasmo, mas não gostei muito do resultado. É mesmo uma pena, mas um leitor não familiarizado com a obra de James Joyce (e talvez também aquele não familiarizado com o aparato crítico sobre sua obra) pode até ter ouvido falar sobre epifanias, mas não vai entender nada sobre elas lendo esse livro. Claro, as 40 epifanias remanescentes estão ali, traduzidas e lado a lado com os originais. O livro oferece isso, óbvio, mas o eventual (e neófito) leitor dificilmente vai entender o que há nelas de belo e fundamental (ou o que há de revelador e questionador nelas). A apresentação assinada por Dirce Waltrick do Amarante, incluída nas orelhas, é boa, e ajuda um tanto ao convidar o leitor para aventurar-se com o livro, apontando para seu valor, mas o ensaio assinado pelo tradutor Piero Eyben é maçante demais, técnico e acadêmico demais, para que o leitor passe por ele antes de chegar às epifanias e tenha ainda algum ânimo. Paciência. Talvez a proposta editorial fosse esta mesmo. Apresentar as epifanias e deixar ao leitor o exercício de reconstruir o sentido de cada uma delas, forçando-o a fazer suas próprias associações. Sabe-se lá. Eu, vou em frente.
[início 16/11/2012 - fim 19/11/2012] 
"Epifanias", James Joyce, tradução de Piero Eyben, São Paulo: editora Iluminuras, 1a. edição (2012) brochura 14x21cm, 42 pág. ISBN: 978-85-7321-397-3 [edição original: James Joyce: Poems and Shorter Writings, editors: Richard Ellmann, A. Walton Litz and John Whittier-Ferguson (Londres: Faber and Faber) 1991]

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

duncan garibaldi

Primeiro volume de uma prometida e ambiciosa série, "Duncan Garibaldi (e a Ordem dos Bandeirantes)" garante bons momentos de leitura. André Cordenonsi criou uma história movimentada, onde se equilibram bem ação e mistério, fantasia e história. O livro me parece direcionado para o público infanto-juvenil, mas um sujeito curioso sobre a história do Rio Grande do Sul também pode vir a se interessar. A história é ambientada na região central deste estado, em Santa Maria, nos entornos de um velho (e antigamente importante) entroncamento ferroviário, e de um conjunto de casas conhecido como Vila Belga. Dois garotos assistem a morte de uma garota e começam a viver uma série de aventuras. Há criaturas mágicas, sociedades secretas, artefatos misteriosos, perseguições de trem, combates singulares, lutas do bem contra o mal. O texto segue o roteiro conhecido de histórias deste tipo: por um lance do acaso um herói é chamado para uma aventura, após fraquejar inicialmente reúne um grupo de associados, passa por uma série de provações, e conta com a sorte (e sua predestinação) para vencer num final épico. Claro, livros assim sempre foram escritos e tem um inegável apelo popular. Fórmulas deste tipo foram rejuvenecidas - se é que se pode dizer uma coisa destas - por J.K. Rowling com sua série Harry Potter, e Stephenie Meyer, com sua série Crepúsculo, que geraram dezenas de obras parecidas, inclusive no Brasil. Há quem acredite que o leitor destas sagas jamais passará a ler sistematicamente livros de adultos quando for adulto, mas isso é algo que apenas uma futura sociologia da literatura nos poderá dizer. O diferencial oferecido por Cordenonsi é que não há apenas invenção e fantasia em seu texto, o sujeito fez um bom trabalho de pesquisa histórica para fundamentar o que apresenta, além de conseguir sustentar o interesse por seu texto até o final do volume. Divertido. Vamos a ver o que ele nos apresentará nos próximos. 
[início 27/10/2012 - fim 31/11/2012]
"Duncan Garibaldi e a Ordem dos Bandeirantes", A.Z. Cordenonsi, Baependi/MG: editora Underworld, 1a. edição (2012) brochura 14x21cm, 235 pág. ISBN: 978-85-64025-36-6

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

mala índole 2

Ler Javier Marías não é tudo o que um sujeito pode fazer na vida, mas não ler Javier Marías é insuportável. Que felicidade receber este livro dele e reler seus contos uma vez mais. Na nobre arte do conto Javier Marías também tem como afirmar suas habilidades. São trinta histórias. Quase todas podem ser encontrados em volumes que foram publicados há muito tempo (Mientras ellas duermen, em 1990, e Cuando fui mortal, em 1996). Há quatro exceções. O conto que dá nome ao livro, Mala índole, foi publicado solitário em um pequeno volume da Plaza y Janés, em 1998. Outros três são mais recentes e inéditos em livro. Ele classifica os trinta contos como "aceptados" e "aceptables", ironias de um sujeito que sabe rir de si mesmo, claro. Boa parte delas são histórias de fantasmas; histórias de duplos; tratam do inevitável absurdo da vida; contam o encontro de homens com seu destino; usam as dificuldades de tradução, os limites da compreensão de outra cultura, para explicar os males humanos; descrevem o fatalismo que persegue um sujeito, como nas tragédias gregas. Reencontrei algumas de minhas histórias favoritas: Gualta; Una noche de amor; Mientras ellas duermen; Lo que dijo el mayordomo; Prismáticos rotos; Cuando fui mortal; Menos escrúpulos; Sangre de lanza; Mala índole; El viaje de Isaac (para citar só um terço deles, difícil escolher entre tantas histórias boas). Agora que conheço relativamente bem sua obra foi possível apreciar melhor algumas histórias. Há contos nos quais aparecem personagens de seus poderosos romances. O pintor/falsificador Custardoy (que acompanhamos em Tu rostro mañana e no Corazón tan blanco) é um deles, aparece em Figuras inacabadas e em Un inmenso favor. O gângster - na falta de um outro qualificativo - Ruibérriz de Torres (de Los enamoramientos) é outro, o encontramos em Sangre de lanza e no excelente Mala índole, já citado. Grande Javier Marías. Esses últimos dias imerso em sua prosa tornaram tudo o mais irrelevante e tedioso. Pena que até os bons momentos, as boas leituras, acabem, inexoravelmente. Vamos em frente. 
[início 31/10/2012 - fim 14/11/2012] 
"Mala índole: Cuentos aceptados y aceptables", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Santillana ediciones generales), 1a. edição (2012) brochura 14x23cm, 433 pág. ISBN: 978-84-204-0280-2

terça-feira, 13 de novembro de 2012

essa coisa brilhante que é a chuva

Os nove contos deste pequeno livro são como episódios de uma festa das luzes particular, festa que Cíntia Moscovich fez por bem dividir com seus leitores. Um leitor calmo leria cada um deles a cada noite, como num Chanucá, mas açodados como hoje somos todos, não o conseguimos, e certamente lemos os contos enfileirados (talvez uma solução seja voltar a eles com calma a cada dia e repetir o deleite). O título, Essa coisa brilhante que é a chuva, ilumina os nove contos, como um Shamash, mas não nomina nenhum deles, uma ideia interessante. Também não há um índice no livro para nos guiar até cada um dos contos, como se Cíntia preferisse que seguíssemos simplesmente a ordem em que ela os colocou. Gatos adoram peixe, mas odeiam molhar as patas trata das tribulações de um cinquentão, as voltas com sua mãe, sua oficina e seu gato; Mare nostrum fala da emoção contida de uma menina, que vê o mar pela primeira vez, com os pais; Caminho torto para uma linha reta conta do apego de um casal a um cachorro enjeitado, de como é o instinto que funciona nas coisas do amor; A balada de Avigdor é uma espécie de conto de fadas moderno, no qual duas crianças trocam o papel que seus pais imaginaram para elas; O brilho de todas as estrelas canta o luto de um sujeito que vai visitar o túmulo da mulher, acompanhado de seu cachorro e seu cavalo; Um coração de mãe é o mais sombrio, ao falar da solidão, de como a vida é mesmo um sopro, da angústia de tentar postergar a morte; Aos sessenta e quatro faz um contraponto com o anterior, mostrando que alguma sorte torna possível contornarmos as adversidades, que nem tudo é fixo e definitivo; Tempo de voo fala da impotência de um sujeito em cadeira de rodas ao presenciar um acidente; Uma forma de herança narra a longa e complicada reforma de uma casa, como se Cíntia quisesse fazer uma espécie tributo às tradições, à memória de uma família e de um tipo de vizinhança, coisas e valores que descartamos facilmente hoje em dia. São contos de uma falsa leveza, que parecem apenas entreter, mas levam o leitor a pensar naquilo que há de mais fundamental na vida (aquilo que há de importante para cada um de nós). Apesar do risco inerente, não há espaço para sentimentalismos bestas nas histórias dela, antes um bom humor entranhado, mesmo nos assuntos que merecem solenidade. Sabe-se lá porque nunca havia lido nada dela antes, mas foi divertido encontrar esse livro em particular e participar desta festa iluminada por Cíntia Moscovich.
[início 03/11/2012 - fim 04/11/2012] 
"Essa coisa brilhante que é a chuva", Cíntia Moscovich, Rio de Janeiro: editora Record, 1a. edição (2012) brochura 14x21cm, 140 pág. ISBN: 978-85-01-40127-4

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

sangue, ossos & manteiga

Sempre generosa, foi Sibele, amiga querida, quem emprestou-me esse livro. Quando conversávamos sobre "Sangue, ossos e manteiga" pensei que se tratava de uma versão feminina dos livros do Anthony Bourdain, principalmente seu "Cozinha confidencial", mas ao terminá-lo sei que é algo diferente (acho que a Sibele já sabia disto quando me emprestou o livro e deve ter se divertido com minhas tentativas de entendê-lo antes de sequer abri-lo). Não é um livro de gastronomia, mas sim um livro de memórias, um livro onde Gabrielle Hamilton registra (e ficcionaliza) suas experiências, sua vida. Mas quem diabos é Gabrielle Hamilton? Ficamos sabendo que ela é proprietária, além de chef, de um pequeno restaurante em New York, aberto no final de 1999. Aos poucos alcançou respeito e admiração, primeiro de sua clientela, depois de seus colegas cozinheiros, a despeito de não ter uma formação clássica em culinária, não ter frequentado escolas especializadas, não fazer parte de uma turma de amigos cozinheiros descolados. Claro, há um bocado de digressões sobre culinária, sobre hábitos de consumo, sobre a realidade da vida nos restaurantes (nada glamuroso, já se sabe). Gabrielle Hamilton sabe contar causos sem ser caricata. O que há de factual em sua vida pode ser resumido mais ou menos assim: nasce na segunda metade dos anos 1960, em uma família de classe média (baixa); os pais - uma francesa que gostava de cozinhar e um pai artista que gostava de sonhar - se divorciam quando Gabrielle tem uns 12 anos; termina o ensino médio e vai para New York; trabalha em um bar de yuppies no início dos anos 1980, ganha uma fortuna e gasta tudo em drogas; é demitida, quase presa, entra para uma faculdade - de letras, feminista e marxista - em Massachusetts, onde fica seus três anos de graduação; resolve viajar, passa uma temporada como mochileira, na Europa e na Ásia, frequentemente passando fome; de volta aos Estados Unidos passa a trabalhar em buffets e empresas de catering; resolve fazer um curso de pós-graduação em escrita criativa; volta a New York e a trabalhar com comida, como free-lancer; no final dos anos 1990, quase por acaso, resolve abrir um restaurante; apesar de só mencionar namoradas até metade do livro eis que se casa com um médico italiano; o casamento não é convencional, não parece que é exatamente amor o que os une; de qualquer forma Gabrielle Hamilton faz sucesso com seu restaurante; tem dois filhos, viaja periodicamente à Itália, para visitar a mãe de seu marido, com quem se identifica. O fato do livro não ser escrito linearmente, mas avançar e retroceder no tempo, como se ela tentasse demonstrar causas e consequencias em sua vida é a grande força do livro (ela sabe escrever bem e dosar o tom do que é confecional - e poderia soar piegas). "Sangue, ossos e manteiga" deve muito a dois autores: Max Weber ("A ética protestante e o espírito do capitalismo" deve ser o livro de cabeceira de Hamilton) e Sigmund Freud (se eu levasse a sério o que há de pajelanças na psicanálise diria que a vida de Hamilton tem facetas que mereceriam legiões de analistas, por décadas, para interpretá-las). Mas minha intuição me diz (mas não tenho paciência para comprovar) que o livro está mal traduzido. O texto é movimentado, ligeiro, mas frequentemente há umas construções totalmente obscuras, como se o tradutor não tivesse o tino de fazer entender o que se dizia no texto original. De qualquer forma nenhum leitor pode dizer que não se aprende um bocado, e não tem horas de prazer, ao se envolver com as aventuras de Gabrielle Hamilton.
[início 21/10/2012 - fim: 01/11/2012] 
"Sangue, ossos & manteiga: a educação involuntária de uma chef relutante", Gabrielle Hamilton, tradução de Lucas Murtinho, Rio de Janeiro: editora Rocco, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 381 págs. ISBN: 978-85-325-2704-2 [edição original: Blood, bones & butter: The inadvertent education of a reluctant chef  (New York: Random House) 2011]