quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

... e depois a maluca sou eu

A partir de meados dos anos 1970 comecei a ler regularmente jornais (inspirado, claro, pelo velho Aachanald Severinovich, meu Papandreos, que lembrava ser de Hegel o ensinamento: "O jornal é a oração matinal do homem civilizado"). O cartunista que eu mais gostava na Folha de São Paulo era o Angeli, mas em algum momento meu olho começou a seguir também os trabalhos de uma outra pessoa, a Mariza Dias Costa. Lembro-me de uma ilustração dela para o Bloomsday de 1982 colocada ao lado de um texto muito bom do Ivan Lessa para o antigo Folhetim (e foi afinal esse texto do Lessa que convenceu-me a ler aquele tijolo que eu folheava displicentemente quando matava aulas no IFUSP). Naquela época Mariza já era a ilustradora oficial das colunas do Paulo Francis e era difícil não associá-la a quaisquer outros textos. Depois de 1990, quando o Francis mudou-se para o Estadão, ela sumiu dos jornais, voltando à Folha em 1999 para ilustrar a coluna do psicanalista Contardo Calligaris, o que faz até hoje. O estilo dela é inconfundível. Aos desenhos ela superpõe texturas, rabiscos, grafismos, colagens. Esse livro ("...e depois a maluca sou eu") inclui sobretudo os trabalhos da segunda fase de colaboração com a Folha, os trabalhos em cores produzidos para a coluna do Contardo Calligaris. São trabalhos realmente impressionantes, fortes mesmo. Mas gosto mais da potência que brota dos trabalhos em preto e branco, do período inicial (aquele em colaboração com o Francis). Quando lembramos que quase tudo aquilo pertence a uma época anterior aos computadores pessoais e eram produzidos através de desenhos, colagens e xerox (e muito past-up, fotolitos e retícula) eles ganham ainda mais potência. O livro inclui cinco textos: a orelha é assinada pelo psiquiatra Marcelo Ribeiro, no miolo encontramos uma apresentação assinada pelo artista gráfico Orlando Pedroso, um perfil biográfico assinado por Laura Capriglione (que também foi do IFUSP, mas um dia decidiu tornar-se jornalista), um registro amigo do colaborador Contardo Calligaris e um depoimento da própria Mariza, onde ela fala do período em que esteve internada em uma clínica. Todos os textos (e o título também, claro) de alguma forma correlacionam a genialidade artística com uma forma de loucura, como um limite da loucura. Enquanto projeto editorial o livro me parece dividido entre uma função quase terapêutica (pela crueza com que desnuda a vida particular da artista) e uma função acadêmica (de garantir através do registro em livro que a produção de uma das melhores ilustradores brasileiras dos últimos quarenta anos torne-se mais conhecida). O livro é muito bem editado, as cores vibram, as fontes e a composição são super bem feitas. Tudo isso torna este livro um mimo para os olhos. E é divertido afinal.
[início: 25/01/2014 - fim: 28/01/2014]
"...e depois a maluca sou eu", Mariza Dias Costa, São Paulo: editora Peixe Grande, 1a. edição (2013), brochura 21x28cm., 224 págs., ISBN: 978-85-89601-38-2

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

ensaio sobre o entendimento humano

Vencedor do Prêmio Paraná de Literatura de 2013, na categoria conto, "Ensaio sobre o entendimento humano" é a estréia em ficção do professor universitário e tradutor Caetano W. Galindo, il miglior fabbro de sua geração. É dele a premiada tradução do Ulysses de James Joyce para o português, publicada em 2012, mas o sujeito tem produzido um bocado de outras cousas também, só umas poucas já resenhadas aqui, como certos livros de Ali Smith, Ian McEwan e Alice Munro. "Ensaio sobre o entendimento humano" reúne 24 contos curtos. Após a primeira leitura fiquei a pensar se eles poderiam ser lidos como num jogo onde eventualmente se extraísse uma única história cifrada do meio deles.  Li uma vez mais as 24 narrativas e me convenci que se houve um dia um romance escondido neles o autor escondeu bem as pistas e as conexões, entretanto ainda acho possível, com algum engenho e paciência, fazer brotar uma novela dali. Apesar desta obsessão minha por mensagens cifradas, cada estória dele se defende sozinha. São narrativas difíceis de classificar, as técnicas utilizadas são múltiplas e o impacto sobre o leitor muito variado, mas nada é irrelevante ou bobo. Galindo tem uma capacidade ímpar de colocar no texto a voz de tribos urbanas distintas, de fixar a forma de falar de cada personagem num grupo social facilmente identificável. Parece que estamos a ouvir os sujeitos inventados por ele, como num filme ou numa peça teatral, tal a força das passagens. Da mesma forma que faz com a linguagem essa inventividade é utilizada também num conjunto de contos que envolvem propostas para uma exposição de artes plásticas (suas Bienais), onde ele emula o jargão pomposo e fugidio dos catálogos de livros de arte; num conjunto wittgensteineano, onde são os exercícios de lógica filosófica que ele parece recriar (as investigações filosóficas); num conjunto curioso de "WH questions" (Praquê?, Onde?, Quem?) e num conjunto de interpretações de sonhos onde é o jargão da psicologia que ele ironiza e reinventa (os Íncubos). Galindo também tem um sentido de humor bem ajustado, mesmo dos textos que envolvem alguma tragédia ou acidente ele sabe extrair diversão. Pelo jeito don Caetano Galindo ainda há de nos surpreender no futuro, não apenas com suas traduções (Finn's Hotel está a caminho), mas também com suas curiosas invenções, sua curiosa ficção. Evoé.
[início: 15/01/2014 - fim: 25/01/2014]
"Ensaio sobre o entendimento humano", Caetano Waldrigues Galindo, Curitiba-PR: Secretaria de Estado da Cultura / Biblioteca Pública do Paraná, 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 92 págs., ISBN: 978-85-66382-04-4

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

mapa dibujado por un espía

O leitor precisa estar de muito bom humor para ler "Mapa dibujado por un espía". Acompanhamos como um cidadão, em uma ditadura, perde lentamente qualquer direito e é progressivamente oprimido, deixando para trás sua auto estima, sua liberdade, seus valores. Somos apresentados a uma história que deve ter se repetido milhares de vezes, com um custo social altíssimo, absurdo, um mundo onde a regra são as prisões aleatórias, mortes seletivas, corrupção e crimes sem fim. Só mesmo um sujeito totalmente idiota ou totalmente canalha pode exprimir algum apreço pelo modelo cubano, louvar de alguma forma o tipo de vida a que foram condenados os habitantes daquele país miserável, onde as pessoas são escravas há tanto tempo dos mesmo senhores que dificilmente conseguirão entender um dia o que é a vida em uma sociedade livre e democrática. Que país desafortunado. Guillermo Cabrera Infante nasceu em Cuba, em 1929. Foi um dos melhores escritores latino-americanos, dono de um estilo em prosa muito particular, autor de Três tristes tigres (um bom romance com influências joyceanas), Mea Cuba (o livro mais sarcástico e divertido sobre um país jamais escrito) e Holly Smoke (uma curiosa história do tabaco e dos charutos). Recebeu o Prêmio Cervantes, uma das maiores distinções para escritores da língua espanhola. Ele participou ativamente da revolução cubana, que levou  Fidel Castro e seus amigos ao poder, em 1959. Jornalista e crítico de cinema, trabalhou como editor em revistas (Carteles, antes da revolução e Lunes de Revolución, durante o período em que viveu em Cuba após a revolução, entre 1960 a 1962). Atuou durante três anos como adido cultural na embaixada cubana na Bélgica. Em 1965 tornou-se mais um dentre os exilados cubanos, inimigo de estado jurado de morte, radicou-se em Londres, onde morreu, em 2005. "Mapa dibujado por un espía", um de seus textos póstumos (que têm sido publicados pela editora catalã Galaxia Gutenberg) deve ter sido escrito em 1968 ou 1973. Trata-se de um relato duro, melancólico e realista, dos poucos meses que passou em Cuba, em 1965. Cabrera Infante vai para Cuba apenas para participar do funeral de sua mãe e pensa em voltar rapidamente para a Europa com suas duas filhas, que viviam ali aos cuidados da avó. Todavia ele é retido em Cuba por quatro meses e só consegue sair de lá por um lance de sorte (aliada a um tanto de sabedoria prática). Ele percebe rapidamente que a Cuba que ele conhecia não existia mais. A população já estava dominada mentalmente, controlada através de uma rede extensa de espiões, delações premiadas, censura em todos os meios de comunicação, oferta limitadíssima tanto de comida e vestuário, quanto de bens culturais. Vários amigos seus já haviam caído em desgraça, tornando-se párias sociais. Ao mesmo tempo em que os ditos inimigos do regime ficavam impossibilitados de trabalhar não podiam emigrar, sair do país, o que na prática os condenava a prisão, a loucura e a morte. Cabrera Infante descreve como passa seus dias em Havana tentando conseguir um visto de saída, com ajuda de uns poucos contatos ainda ligados ao regime. Ele vai a cafés e restaurantes, participa de festas, reencontra amigos, fala sem pudor dos relacionamentos sexuais que mantém com várias mulheres que conhece naquele período (apesar de sempre registrar que ama mesmo sua mulher, Míriam Gomez, que continua esperando-o na Bélgica), dissimula com seu luto um envolvimento maior com os grupos de amigos que tentam ainda descobrir formas de resistir ao controle social do regime. O incrível é que a mesma ditadura que Cabrera Infante descreve em seu livro continua hoje no poder, massacrando completamente sua população, obviamente para benefício de uns poucos sujeitos que espoliam e roubam o país há cinquenta anos. Já são duas gerações de cubanos que desconhecem o que é viver em um país democrático, o que é viver com um mínimo de liberdade. Segundo Antoni Munné, que assina uma curta introdução ao livro, Cabrera Infante sempre dizia que trabalhava neste relato dos dias que antecederam seu exílio, mas trata-se obviamente de um texto inacabado. A narrativa do livro termina exatamente no momento em que o avião onde ele está cruza um ponto onde seria impossível a viagem não continuar para a Europa. Ali mesmo, no avião, ele começa a escrevê-lo, mas o texto é bem diferente dos demais que já li dele (onde abundam os jogos de palavras, a erudição, as citações). Talvez o realismo dele se preste a dureza dos fatos que são descritos. Excelente livro, mas não é em qualquer hora que temos estômago e disposição para ler livros assim. Mas, de qualquer forma, trata-se de um livro fundamental, pois existem ainda hoje aqui no Brasil uns tiranetes de plantão, uns proto-fascistas, uns chauvinistas tontos, uns porcos idiotas que defendem alegremente a adoção deste modelo canalha de controle social. Enfim, se a população brasileira não se preparar estes canalhas ainda vão transformar o Brasil numa imensa Cuba. Ai do nós.
[início: 17/01/2014 - fim: 21/01/2014]
"Mapa dibujado por un espía", Guillermo Cabrera Infante, edicíon de Antoni Munné, Barcelona: Galaxia Gutenberg (Círculo de Lectores), 1a. edição (2013), capa-dura 13x21 cm., 399 págs., ISBN: 978-84-15472-76-6

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

asa de sereia

Pouco conheço de Curitiba, cidade onde tenho poucos mas bons amigos (que raramente visito, ai de mim). De uns tempos para cá Curitiba parece ter se impregnado um tanto em minha memória afetiva. Não por conta de minhas lembranças dos passeios que lá fiz com estes amigos, ou mesmo de quando fui lá a trabalho ou para algum evento acadêmico, mas sim por coisas que li de Luís Henrique Pellanda. Ele narra tão vividamente sua Curitiba nas 45 crônicas reunidas em "Asa de sereia" que nos familiarizamos com ela. Incrível. Dois terços das histórias haviam sido produzidas para um site que foi desativado (o Vida Breve), um terço em jornais e revistas. São coisas recentes, quase tudo foi publicado em 2012 e 2013. Pellanda domina tão completamente a arte da crônica que já nas primeiras linhas de cada história começamos a pensar sobre o que virá a seguir, com um sorriso ansioso nos lábios. O narrador das histórias é um flâneur antes que um voyeur, um flâneur que vagabundeia pela cidade, quase sempre sem pressa para compromissos ou responsabilidades e que se deixa arrebatar pela vida. Em geral seu olhar foca nos habitantes que parecem ter sido deserdados pela cidade (e por isso mesmo são aqueles que mais zelam dela, de suas tradições, de seus ritos e costumes, como se fossem os fiéis camareiros de uma senhora antiga, aqueles que congelam o tempo, por hábito). Pellanda é um bom frasista, um bom aforista. Em uma ou outra história há uns surrealismos (árvores, aranhas e outros bichos que falam e que sentem), mas nada que esconda o entendimento do mundo contemporâneo que ele descreve. Há vezes em que do nada brota algo que associamos ao Shakespeare, ao Sterne, ao Pamuk, ao Drummond, (uns mimos eruditos que alegram o bom leitor). Há vezes em que todo o sarcasmo que já encontramos em seu "Nós passaremos em branco", naquela sua antologia dos demônios curitibanos, parece dominar as histórias. É certo. Sorte da cidade que conta com um cronista assim.
[início: 30/12/2013 - fim: 06/01/2014]
"Asa de sereia", Luís Henrique Pellanda, Porto Alegre: Arquipélago editorial, 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 208 págs., ISBN: 978-85-69171-53-8

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

vida querida

Comparado aos dois outros livros de Alice Munro que já li e resenhei aqui, "Felicidade demais" e "Fugitiva", esse "Vida querida" deixa muito a desejar. Não gostei de nenhuma das histórias, achei-as esquemáticas demais, artificiais demais. Talvez seja apenas o esgotamento típico que experimentamos quando lemos em sequência vários livros de um mesmo autor (embora isso nunca acontece quando este autor é realmente poderoso, seminal, grande). Paciência. Questões feministas são apresentadas mais explicitamente nestes contos do que nos anteriores. O narrador de Alice Munro sempre fala como se explicasse ao leitor um filme que assistem juntos, um quadro de uma exposição que veem, uma cena da vida real que se desenrola para ambos, mas talvez estas explicações sejam irrelevantes, óbvias, simplistas (o que aborrece o leitor). Alice Munro também abusa nestes contos dos encontros casuais que fazem suas histórias se movimentar. A vida real é mesmo uma sucessão infinita de acasos, aleatoriedades, mas há ordem mesmo na loucura (se quisermos vê-la) e mesmo o caos pode ser determinístico (se quisermos estudá-lo). O livro reúne quatorze contos. Dez deles são pura ficção e geralmente envolvem, como num tríptico, sedução/sexo/separação (e suas consequências). Uma ou outra história empolga (uma, "Com vista para o lago", na qual o narrador é a consciência de uma senhora senil; outra, "Orgulho", na qual um casal de amigos partilham confidências enquanto envelhecem), mas é pouco. As quatro narrativas que fecham o livro, identificados como "Finale", são ficcionalização de memórias e não propriamente invenções. A escritora e a memorialista se confundem sobre qual delas deve ser condescendente e qual delas deve ser indulgente e isso prejudica as narrativas, tornando-as meros exercícios de aplicação de um modelo de escritura, de uma forma já bastante experimentada de contar histórias, como se ela fosse a professora de uma oficina de literatura cuja aluna é ela mesma. Sei lá. Talvez seja mesmo o caso de esquecer Munro por uns tempos, tentar ler estes contos num outro dia e ver se eles podem me agradar mais. Sigamos. Um desvio sobre a tradução: Preciso ainda conversar com o Galindo sobre isso, mas ele optou por umas escolhas que me fizeram pensar um bocado. Há pelo livro coisas que no início soam inusitadas, como "tirar uma lasca", "engrupindo", "encarar o rojão", "fora da casinha", "tirar o sarro" mas que depois se diluem no texto. Estará o Galindo nos ajudando a aumentar o léxico, nos instruindo sobre o leque de palavras que temos a disposição e evitamos usar no dia-a-dia - ao menos eu, pernóstico que sou, evito?. Veremos.
[início: 21.12.2013 - fim: 25.12.2013]
"Vida querida", Alice Munro, tradução de Caetano W. Galindo, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a edição (2013), brochura 14x21 cm., 316 págs., ISBN: 978-85-359-2367-4 [edição original: Dear Life (Toronto: McClelland and Stewart Limited / Random House / Bertelsmann) 2012]

domingo, 19 de janeiro de 2014

roads to berlin

Já terminei de ler alguns livros esse ano e deveria ter feito ao menos um par de registros aqui, mas decidi chegar ao fim de "Roads to Berlin" para começar com ele os trabalhos, os prazeres e os dias de 2014. Cees Nooteboom é um dos autores que mais gosto. Viajar com ele, viajar com seus livros e sua imaginação, sempre é todo um ensinamento, um aprendizado, uma aventura. "Roads to Berlin" é dividido em quatro partes. A primeira delas (e mais longa, pouco mais da metade do livro) foi publicada originalmente em 1990. Nela aprendemos que Nooteboom ganhou uma bolsa da DAAD para ficar um ano em Berlim, em 1989, justamente o ano da queda do Muro. O projeto inicial era produzir poesia, ficção, relatos da viagem, mas os acontecimentos daqueles dias o fizeram mudar de planos e acompanhar o frenético início da reunificação alemã. O resultado foram crônicas que foram publicadas originalmente em revistas, antes de serem reunidas em livro. São crônicas muito interessantes, pois contrastam vividamente os meses que antecederam e os que se seguiram a queda do Muro. O olho de poeta e de viajante pouparam Nooteboom de exercícios de futurologia. O que ele descreve antes são perguntas, bem mais do que respostas, sobre qual seria o destino da Alemanha (e da Europa). Li esta primeira parte do livro numa tradução espanhola: "La desaparición del muro", de 1992, que já resenhei aqui. Um eventual leitor poderá encontrar ali uma discussão mais longa e detalhada sobre as crônicas e as observações de Nooteboom. A segunda parte do livro é um pouco menor que a anterior (ocupa um terço dele) e reúne cinco ensaios que foram publicados originalmente em revistas holandesas, em 1997 e 1998. Nooteboom pensa sobretudo em imagens, recupera suas reflexões anteriores e produz digressões sobre aquilo que vê ao percorrer uma Alemanha que se transformava rapidamente, política e economicamente. Ele flana pela Berlim que tornara-se um imenso canteiro de obras, visita museus e universidades, vai a restaurantes e cafés, conversa com os amigos e sobretudo com desconhecidos. Nada parece ter seguido linearmente os acontecimentos de dez anos antes. Ele nos lembra, sem amargura, que "A história é um profeta que olha apenas para atrás". Na terceira parte encontramos sete ensaios curtos escritos em 2008, tempos da grande crise financeira que de alguma forma ainda experimentamos. Eles são um tanto mais curtos que todos os anteriores, mas são os mais ricos. Nooteboom foge da descrição objetiva das transformações físicas por que passou a Berlim poderosa que reencontra. Mesmo quando vai em busca do primeiro hotel onde hospedou-se por lá, vinte anos antes, uma nostalgia fácil, sabe fazer o leitor encontrar a beleza e a significância dos pequenos registros.  Uma geração inteira já havia nascido na Alemanha reunificada, mas - para repetir um símile que ele usa frequentemente - somente quando o último sobrevivente daqueles dias morrer é que a experiência da queda do Muro alcançará o status mítico ao qual está condenada. Ele faz desvios pela filosofia, matemática, a poesia, o ativismo político (de amigos, como Paul Hoffman, e desconhecidos, como Mildred Harnack) e a teoria da arte (como a de Anselm Kiefer). Os desvios geográficos e as longas viagens de carro que faz são um contraponto aos desvios literários, às digressões narrativas. A última parte, escrita em abril de 2012, descreve uma semana vivida em Berlim e uma semana vivida em Munique, encontros onde ele discute direitos autorais, o futuro do livro. Ele não sabe se o caos e as dúvidas da crise financeira já podem ser esquecidos. Ele sabe - a exemplo de Proust - que as reencarnações que podemos ter são aquelas que experimentamos durante nossas vidas (e não em vidas futuras). E sabe que a exemplo dos indivíduos, também os países experimentam metamorfoses sem fim. O livro termina com um curto epílogo (escrito em 1993) onde são contadas três fábulas, premonitórias daquilo que acompanhamos na Europa e no mundo nos últimos vinte anos. As diferenças culturais entre os europeus são mesmo compreendidas e/ou aceitas? Claro que não, ele diz. Fábulas não são expressões da verdade, mas sim de sentimentos. Há vezes que os poetas enxergam mais que os políticos e há vezes em que os poetas só saberão que viram algo corretamente quando forem alertados disto (como ele diz, o passado é um tipo especial de memória, bastante seletiva e arbitrária). Nooteboom faz bem aquilo que um escritor pode fazer: nos alertar sobre aquilo que é especificamente humano na História e nos alertar para nossa quase incapacidade de entendermos uns aos outros. Não é pouco. Ao fim esse velho senhor parece convencido da verdade das palavras de Francis Bacon, enfático, a um jornalista: "Eu não acredito em nada. Eu sou um otimista." E eu, que em breve estarei flanando pelas ruas e avenidas, cervejarias, cafés e parques de Berlim, espero que 2014 seja o ano de se encontrar - a exemplo deles, Bacon e Nooteboom, otimismo no nada.
[início: 20/12/2013 - fim: 17/01/2014]
"Roads to Berlin: Detours and riddles in the lands and history of Germany", Cees Nooteboom, com fotografias de Simome Sassen, tradução (do holandês para o inglês) Laura Watkinson, London: MacLehose Press, 1a. edição (2013), brochura 13x20 cm., 352 págs., ISBN: 978-1-84866-291-9 [edição original: Berlijnse Notities (Amsterdan: Uitgeverij De Arbeiderspers) 1990; Berlijn 1989-2009 (Amsterdan: De Bezige Bij) 2009]