sábado, 21 de junho de 2014

lo que hemos comido

O livro começa com um contraste, entre Aristóteles e Montaigne: o primeiro escreveu que "o homem é um animal racional", esse último que "o homem é um animal que cozinha". Josep Pla sintetiza as proposições e afirma: "Montaigne hace una definición, que el hombre es el animal que guisa, a mi juicio, más razonada que la de Aristóteles cuando dijo que el hombre es un aminal racional. Si lo es, la razón le ha servido para bien poca cosa, hablando ahora en términos absolutos, mientras a guisar lo debemos todo". A aventura de ler "Lo que hemos comido" só reserva alegrias. Ao terminar de lê-lo só resta ao leitor um movimento: embarcar para a Catalunya, procurar uma das verdadeiras catedrais de lá (seus maravilhosos mercados públicos, como o Mercat de La Boqueria) e aí sim começar uma outra viagem, a gastronômica, para alegrar corpo e alma, sem pressa e sem pudor, sem medo e sem temor, sem fim e sem volta possível. Publicado originalmente no início dos anos 1970, esse livro apresenta as reflexões de Josep Pla sobre cada um dos aspectos da gastronomia catalã. Josep Pla é ainda hoje, mais de trinta anos após sua morte, reconhecido como um dos autores mais importantes da literatura catalã do século XX e um dos principais divulgadores da língua, costumes e tradições de sua terra ("Els països catalans", como ele gosta de grafar). Dele já li "Cartas de Italia", uma pequena maravilha. Mas o que encontramos nesse "Lo que hemos comido"? São 56 capítulos densos, que discutem as entradas e as carnes; os acompanhamentos e as verduras; os peixes e demais frutos do mar; os molhos, os ovos e as favas; as sobremesas e os vinhos; os costumes e curiosidades de sua região. Não se trata de um livro de receitas culinárias, longe disso, mas sim ensaios sobre o desenvolvimento de cada prato inequivocadamente catalão ou que foi absorvido pela culinária catalã. As opiniões são fortes. As curiosidades e informações se sobrepõem sem fim. O que mais me surpreende nesse livro é a isenção jornalística e/ou intelectual de Josep Pla. Ele nunca é ufanista, nunca desqualifica as demais culturas e hábitos gastronômicos. Na verdade ele até é muitas vezes irônico e cruel com os catalães, como por exemplo quando afirma tratar-se de um povo "formado por personas que nunca están dispuestas a mirar, ni a observar, ni a recordar; un lugar habitado por tímidos mudos, charlatanes hiperbólicos y amantes de la improvisación". Pla é um frasista muito espirituoso e elegante, que sabe apresentar ao leitor seus pontos de vista, estimulá-lo a refletir sobre eles, não em simplesmente aceitá-los como verdades perenas. Claro, muitas técnicas de conservação e preparo, a globalização e intercâmbios culturais, além dos avanços na logística de transporte atualmente disponíveis afetam parte das proposições de Pla, mas o quê há de fundamental em seu livro, conceitualmente falando, continua válido: o respeito pelos bons ingredientes e produtos; pela experimentação e pela técnica; pela tradição reinventada pela inovação. Manuel Vázquez Montalbán, que assina a apresentação do livro afirma que Josep Pla é uma espécie de profeta das qualidades da dieta mediterrânea. Aliás, acredito que nem o grande personagem de Montalbán, o detetive Pepe Carvalho, nem seus parceiros de investigação e de combates gastronômicos, Biscuter e Enric Fuster, jamais existiriam sem as reflexões de Pla incluídas em "Lo que hemos comido". Seguro, é tempo de voltar a viajar e visitar a Catalunha, é tempo de voltar a ler Montalbán, claro que sim.
[início: 17/05/2014 - fim: 06/06/2014]
"Lo que hemos comido: El verdadero profeta de la dieta mediterránea", Josep Pla i Casadevall, tradução de P. Gómez Carrizo, prólogo de Manuel Vazquez Montalbán, Barcelona: Ediciones Destino (Contemporánea Narrativa, colección Austral, 817) / Grupo Planeta), 1a. edição (2013), brochura 13x19 cm., 350 págs., ISBN: 978-84-233-4716-2 [edição original: El que hem menjat - l'obra completa de Josep Pla, vol.22 (Barcelona: Josep Vergés i Matas / ediciones Destino) 1972]

3 comentários:

Anônimo disse...

Esse começo é tão bom quanto o de Fome de Paris, de A. J. Liebling:

À luz daquilo que Proust escreveu com um estilo tão sutil, foi um prejuízo para o mundo ele não ter um apetite mais aguçado. Com uma dúzia de ostras de Gardiners Island, uma tigela de caldeirada de mariscos, um punhado de mexilhões, algumas vieiras, umas três poções de refogado de siri mole, umas espigas de milho cozido, uma delgada posta de peixe-espada, cortada de uma área generosa, um par de lagostas e um pato de Long Island, ele talvez tivesse escrito uma obra prima.

Aguinaldo Medici Severino disse...

Legal. Vou procurar essa tua dica. Abraços

Aguinaldo Medici Severino disse...

Legal. Vou procurar essa tua dica. Abraços