sexta-feira, 31 de outubro de 2014

o colóquio dos cachorros

"O colóquio dos cachorros" é a última das doze narrativas curtas de Cervantes reunidas no livro "Novelas exemplares" (publicado originalmente em 1613). Ela segue imediatamente os sucessos descritos em "O casamento enganoso", onde o leitor acompanha a narrativa de um jovem militar (um alferes), que foi ludibriado pela mulher com quem havia se casado (e de resto ter contraído dela uma doença venérea, da qual convalesce em um hospital). Após relatar seus aborrecimentos no casamento o alferes passa a contar a um amigo a surpreendente conversa que ouviu de dois cachorros, o que vem a ser o colóquio que encerra o ciclo das novelas exemplares de Cervantes. Cipião e Berganza são dois cães de guarda de um hospital de Valladolid. Em uma noite ambos descobrem que adquiriram a capacidade da falar. Para exercitar suas novas habilidades Berganza passa a contar as aventuras pelas quais passou até ser admitido no hospital. Bastante dispersivo em suas lembranças Berganza é reiteradamente corrigido por Cipião. É um texto divertido, através do qual Cervantes fala das mentiras e do mau comportamento dos homens, sempre dispostos a enganar seus semelhantes. Cipião sempre faz comentários eruditos, parece ser mais sábio que Berganza e, didático, utiliza conceitos filosóficos para extrair verdades morais das aventuras de seu colega, além de incluir no colóquio análises ligeiras sobre a literatura, a ciência e a política daqueles tempos. Com a chegada da aurora o colóquio e o livro terminam, com a promessa de continuarem na noite seguinte com o relato das aventuras de Cipião (caso eles continuem com o dom da palavra, mas isso o leitor jamais saberá se aconteceu ou não). Assim como "A briga dos dois Ivans" e "A lição do mestre", ambos já resenhados aqui, esse pequeno livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing).
[início - fim: 29/10/2014]
"O colóquio dos cachorros", Miguel de Cervantes, tradução de Nylcéa Thereza de Siqueira Pedra, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2014), brochura 13x18 cm., 96 págs., ISBN: 978-85-61578-41-1 [edição original: Novelas ejemplares de honestísimo entretenimiento / El coloquio de los perros (Madrid: Juan de la Cuesta) 1613]

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

decapitados

Depois de uma semana longe de casa eis que volto e encontro encomendas e mimos me esperando (além de contas a pagar e um punhados de ridículos folhetos de propaganda da indigente política brasileira, claro). Na caixa da Casa del Libro estavam o último Javier Marías ("Así empieza lo malo"), os contos completos de Thomas Hardy e as duas séries de ensaios do Cabrera Infante sobre as quais já li maravilhas (de sorte que esse final de ano promete alegrias mil, seguro que sim). Na cota dos mimos inesperados encontro este "Decapitados", narrativa mais recente de Leonardo Brasiliense (sujeito que andou ocupado, pois esse é o terceiro livro dele editado neste ano). No domingo, ao invés de preocupar-me quem seria a nulidade que os gloriosos brasileiros escolheriam para governá-los, dediquei umas boas horas à prosa refinada de Brasiliense. Fiz bem. Em "Decapitados" o leitor encontra dois textos que se espelham: uma novela e um conto (escrito na forma de um drama, pronto para ser encenado e/ou filmado). Na novela acompanhamos como os moradores de uma pequena cidade reagem ao desaparecimento de uma relíquia religiosa (o crânio de um sujeito que foi muito importante na fundação, crescimento e posterior emancipação política da cidade, um velho monsenhor, há muito falecido). O protagonista da história é Alexandre, um jovem que encontra o crânio e não sabe como fazer para devolvê-lo à capela de onde foi retirado (o leitor não sabe exatamente como o crânio chegou até o rapaz, mas isto pouco importa). O que a história discute são as reações intempestivas de cada morador da cidade ao desaparecimento do crânio, como se todos estivessem num transe religioso que se dissipa, deixando-os  desamparados, decapitados todos, sem rumo (livres afinal, mas nem sempre e nem todos sabem apreciar o valor - e a necessidade absoluta - da liberdade). Entendi a novela como uma reflexão sobre as dores de um aprendizado e sobre as dificuldades dos ritos de passagem da juventude para a vida adulta ou sobre as agruras de uma sociedade que perde o conforto de sua rede de hipocrisias. Brasiliense parece também inverter a cronologia do mito da queda dos homens no paraíso, fazendo Alexandre encontrar o mal encarnado numa serpente apenas no final. Curioso. Finda a novela encontramos um conto curto. Basicamente trata-se de uma cena dramática, onde um grupo de pessoas, num bar da periferia da cidade descrita na novela, conversa (ou antes,  produzem monólogos ensimesmados que não permitem verdadeiramente alguma interlocução). Em algum momento um dos personagens fala da recente retirada do crânio do monsenhor no cemitério, mas ninguém o leva à sério. Enquanto na novela são as pessoas mais importantes da cidade que se manifestam (e enlouquecem), por conta do sumiço da bizarra relíquia, no conto as pessoas simples da periferia reagem com indiferença total ao próprio projeto de criar uma relíquia, mais preocupadas que estão com seus próprios problemas. O contraste é muito interessante. Vida longa para "Decapitados" meu caro Brasiliense, vida longa. E parabéns. 
[início: 26/10/2014 - fim: 27/10/2014]
"Decapitados", Leonardo Brasiliense, São Paulo: Benvirá (editora Saraiva), 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 125 págs., ISBN: 978-85-8240-162-0

terça-feira, 28 de outubro de 2014

días de lectura

Semanas atrás Marilda e Leonardo convidaram-me para falar sobre Joyce e Proust para seus alunos. Foi uma tarde produtiva, divertida, agradável. O bom destas ocasiões é que inevitavelmente voltamos aos originais, seja para dirimir alguma dúvida que surge do nada, de repente, seja para nos certificar de um detalhe bobo que gostaríamos incluir na palestra. Também relemos aqueles textos de apoio que são necessários uma vez mais, por muito que estejamos familiarizados com o assunto sobre o qual iremos falar. Foi assim que retirei dos guardados e reli um ensaio de Samuel Beckett (que em breve registrarei aqui) e esse pequeno livro (que achei em um sebo madrilenho, em fevereiro, como que por encanto). Em "Días de leitura" estão reunidos ensaios curtos de Marcel Proust. Os ensaios são: "John Ruskin" (extraído de Pastiches et Mélanges), "Dias de leitura" (prefácio incluído na tradução que Proust fez do "Sésame et les Lys" de Ruskin), "Sobre o método de Sainte-Beuve" (vários trechos extraídos do Contre Sainte-Beuve) e "Swann explicado por Proust" (incluído em Essais et Articles, mas produzido para um jornal da época do lançamento do primeiro volume de sua série "Em busca do tempo perdido"). Os textos falam sobretudo do entendimento possível das obras que lemos (Proust fala de Ruskin e de Saint-Beuve - e da obra dos dois - cotejando-as com conceitos filosóficos, referências de teóricos de arte e literatura, além dos textos ficcionais de seus contemporâneos). Aprendemos que a boa leitura é exatamente uma boa conversação com homens muito mais sábios e interessantes que aqueles que eventualmente temos chance de conhecer em nosso redor, na vida cotidiana (Proust escreve no início do século XX, o que dizer então da mediocridade encarnada reinante deste ridículo início de século XXI). O livro incluí várias notas de rodapé, uns mimos eruditos que fazem a festa do leitor que gosta de detalhes e das fontes originais. Leitura mais do que satisfatória, uma verdadeira educação dos sentidos.
[início: 13/07/2014 - fim: 15/10/2014]
"Días de lectura", Marcel Proust, tradução de Alicia Martorell e Núria Petit Fontserè, Madrid: Taurus (Great Ideas) Santillana Ediciones Generales (Grupo Prisa), 1a. edição (2012), brochura 11x18 cm., 134 págs., ISBN: 978-84-306-0933-8 [edição original: extratos de Contre Sainte-Beuve (Paris: Bernard de Fallois) 1954, Pastiches et Mélanges (Paris: La Nouvelle Revue française) 1919 e Essais et Articles (Paris: Gallimard) 1971]

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

contos da vida difícil

São quatorze contos temáticos, que gravitam em torno de um período histórico de Jaguarão, cidade localizada no extremo sul do Brasil, na fronteira com o Uruguai. Aldyr Garcia Schlee conta histórias que se passam no início do século passado, histórias de prostitutas, cafetões e amores proibidos, memória, sexo e decadência; narrativas nem panfletárias nem estereotipadas onde o tráfico de mulheres, a construção de uma ponte fronteiriça e a hipocrisia de uma sociedade são coisas que se justificam automática e simultaneamente. Schlee inspirou-se em um farto material documental, produzido por uma pesquisadora uruguaia (Yvette Trochon), onde é descrito o tráfico de mulheres nos países do Atlântico Sul, de 1880 a 1932. Se a inspiração é factual o estofo das narrativas remete a sua memória e experiência, aos fragmentos de histórias que ouviu quando garoto, de parentes e amigos mais velhos. Os contos seguem uma ordem aproximadamente cronológica. No início, nos primeiros contos, o narrador é sempre um garoto ou jovem confuso, que ou não se lembra bem do que ouviu ou viu, ou não entende o que ouviu ou viu; nos últimos o narrador já é mais experimentado e irônico, deixa transparecer ao leitor que tudo pode ser inventado, inclusive a vida (ou, como nas palavras de Enrique Vila-Matas, o narrador deixa de ser alguém que vive uma vida e passa a ser alguém que por não poder viver uma vida completamente passa a escrever sobre ela). O narrador nunca julga, nunca é moral. Gostei especialmente de "O que passou com Juan Carlos", onde uma lenda urbana sobre um cafetão uruguaio é recontada por Schlee; de "Uma mulher de passada", onde é o passado nebuloso da mulher de um militar importante da região que enfeitiça a um garoto e de "Mamá Burnes", onde são descritas as habilidades de uma cafetina em adaptar-se às circunstâncias políticas de seu tempo em paralelo a sua lenta decadência e morte. Livro interessante, de um sujeito de quem só havia lido antes "O dia em que o Papa foi a Melo", muito tempo atrás. Acho que é o caso de procurar outras coisas dele. Veremos.
[início: 08/10/2014 - fim: 09/10/2014]
"Contos da vida difícil", Aldyr Garcia Schlee, Porto Alegre: editora ardotempo, 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 184 págs., ISBN: 978-85-62984-30-3

terça-feira, 7 de outubro de 2014

luz por todas as partes

Essa antologia de poemas de Cees Nooteboom me acompanha desde fevereiro, quando a encontrei - "drowning in honey, stingless" - na La Central de Callao (em Madrid). Desde aqueles dias outros volumes e leituras tomaram o seu lugar, açodados e esquecidos da boa educação, mas assim como com os demais livros de poesia que li neste ano (volumes de Ricardo Aleixo, Haroldo de Campos, Romar Beling, Robert Louis Stevenson, Vladimir Nabokov, Edward Lear, Carlos Saldanha Legendre, William Faulkner, W.G. Sebald, Cees Nooteboom e Ajo) a certeza de voltar cedo ou tarde a ele recobria-o com uma camada adicional de encantamento. Ontem, quando cheguei ao último dos poemas da antalogia ("Calera y Chozas", de 1960) e li "... nadie se sube / el viejo en su banco / espía con ojos ávidos / el tren viviente // quizá sea siempre así / el jefe de estación pita tres veces / y agita el banderín rojo ; el tren tiembla y chilla / en el paisaje anhelante. // quizá nunca volveré / a Calera y Chozas." senti que também eu nunca voltarei a muitos lugares que visitei e amei um dia. Como os poetas engendram algo que transmite exatamente os sentimentos que experimentamos num determinado dia (porém raramente verbalizamos) é algo que nunca deixa de me surpreender. Essa antologia reúne seis décadas de produção poética, desde "El poema negro" (de 1960), passando por "Poemas cerrados" (de 1964); "Ausente, presente" (de 1970); "Abierto como una concha, cerrado como una piedra" (de 1978); "Cebo" (de 1982); "El rostro del ojo" (de 1989); "Autorretrato de otro" (de 1993, que já resenhei aqui); "Así pudo ser" (de 1999) e "Dulzamara" (de 2000), chegando a "Luz por todas as partes" (de 2012). Cabe registrar que essas datas correspondem às traduções espanholas. Caso seja o caso de conferir aquelas das edições originais deve-se consultar o site do Nooteboom. O tradutor, Frederico García de la Banda, apresenta em uma breve introdução as dificuldades específicas de verter poesia do holandês para o espanhol. Os poemas se deixam ler com vagar. Quase sempre há uma citação neles, uma cifra hermética, uma chave mágica para um mundo distinto do nosso. Nooteboom rende homenagem a pensadores e poetas. Conversa com Ungaretti, Wallace Stevens, Virgílio, Bashô, Lucrécio, Li Ho. Usa a poesia para fixar uma experiência visual, um quadro, uma exposição, um arrebol que viu no oriente, um jardim coreano onde descansa. Registra epifanias religiosas, o contato com o mítico e o sagrado. Faz filosofia como um poeta. São poemas de um viajante, de um sujeito que conheceu mundos e pessoas, cidades e tradições. Ah!, Nooteboom, como  invejo tuas viagens e experiências, mas sem tua erudição, sem o grego e o latim como guias, sem as horas e os anos de vigília com os livros, como seriam minhas memórias destas mesmas viagens, destas mesmas experiências? Talvez eu também sonhasse quando li: "Entonces vi / en el parque de Charlottenburg / una sombra dibujada contra el sol / envuelta en una luz / que me deslumbró // Un instante, una mirada. / La de ella, esquiva, / a juego con las hojas que caían, / el negro de estanque, / el frío de otra vida. // ?Lo que ella vio? / Un hombre en un banco / soñando con un poema. // Otoño, caía la tarde, / los cuervos regresaban a casa, / manchas que gritan." Vou logo ali continuar a sonhar e já volto.
[início: 15/02/2014 - fim: 05/10/2014]
"Luz por todas as partes: Antología", Cees Nooteboom, tradução de Fernando García de la Banda, Madrid: Visor Libros (volumen DCCCXXII de la colección visor de poesía, Dutch Foundation for Literature), 1a. edição (2013), brochura 12,5x19,5 cm., 303 págs., ISBN: 978-84-9895-822-5 [edição original: Licht overal (Antwerpen/Netherlands: De Bezige Bij) 2012]

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

xirú lautério e o tigre n'água

Do Byrata já li várias revistas em quadrinhos, mas só uma delas já havia registrado aqui (Xirú Lautério e os dinossauros). Comprei "Xirú Lautério e o Tigre n'água" durante a última feira do livro de Santa Maria, ainda em maio. Como esse volume sumiu de meu radar e ficou tanto tempo sem ser registrado aqui só meus combates com o velho Alzheimer pode explicar. Paciência. A história foi escrita e finalizada com tinta nanquim por volta de 1993, mas o Byrata deixou as pranchas originais guardadas durante vinte anos para só as digitar e editar recentemente. A história é movimentada, assim como na aventura com os dinossauros. Encontramos fugas espetaculares dos perigos do campo, peleias inusitadas do gaudério com o mundo tecnológico dos helicópteros e caças Xavantes, causos contados à luz de rodas de fogo, cavalgadas épicas e o tal encontro com uma onça pintada nas encostas do rio Jaguari. Byrata diverte ao apresentar sua leitura das tradições gaúchas. Claro, o Xirú faz por merecer o título de "o mais bagual dos personagens das histórias em quadrinhos brasileiras". Parabéns Byrata.
[início/fim: 29/04/2014]
"Xirú Lautério e o Tigre n'água: uma aventura no Rio Jaguari", Byrata (Jorge Ubiratã da Silva Lopes), Santa Maria/RS: editora Rio das Letras, 1a. edição (2013), brochura 21x30 cm, 24 págs., ISBN: 978-85-65172-09-7

sábado, 4 de outubro de 2014

a lição de anatomia do temível dr. louison

Se o sujeito gosta de ficção científica, mundos alternativos, realidades inventadas, fantasias descompromissadas, sociedades secretas, narrativas onde tecnologia e história se fundem (e que sejam fundamentalmente bem escritas), irá divertir-se um bocado com "A lição de anatomia do temível Dr. Louison", de Enéias Tavares, vencedor do concurso Fantasy Casa da Palavra (editora carioca que faz parte do grupo português Leya). Descobri que os sub-gêneros da literatura fantástica são quase tão numerosos como os grãos de areia de um mar. O livro do Enéias pertence a categoria steampunk, onde são utilizados elementos que remetem à era vitoriana, personagens históricos reais (ou ficcionais, de outros autores) e alta tecnologia, sobretudo mecanismos movidos a vapor (daí o steam - vapor em inglês). Enéias povoa seu livro com personagens de Lima Barreto, Machado de Assis, Álvares de Azevedo, Raul Pompéia e vários outros numa cidade que poderia ser Porto Alegre, fosse o planeta Terra um lugar ligeiramente mais bizarro do que esse em que vivemos. A história é movimentada, não dá fôlego ao leitor e faz uso de várias técnicas narrativas: cartas, diários, entrevistas, transcrição de documentos. Enéias consegue manter atento mesmo o leitor não familiarizado com o gênero com uma série de mimos, na forma de citações, alusões e associações com textos clássicos, crítica literária, teorias sociológicas, filosóficas ou psicanalíticas. Claro, diverte-se mesmo o leitor que embarca de imediato na proposta e aprecia as ironias recorrentes que ali encontra (num certo sentido parece que o autor, Enéias, tenta desculpar o histrionismo de seus narradores, tenta estabelecer uma ligação direta com o leitor). Os personagens, quase todos empolados, retóricos, afetados cada um à seu modo, propiciam o exercício de vários registros de linguagem, e nisso Enéias demonstra total controle e versatilidade (e um sarcasmo quase cruel), criando o aspecto mais saboroso do livro. A história que se conta é a de uma vingança bem elaborada, a eterna luta do nobre bem e do absoluto mal. Um sujeito é acusado pelo desaparecimento de personalidades importantes da cidade. Um grupo de amigos tenta entender sua motivação e eventualmente ajudá-lo. As duas partes finais me pareceram demasiadamente explicativas, como se o narrador não pudesse deixar nada sem ser elucidado (mas talvez isso faça parte dos estatutos deste gênero literário). Aparentemente haverá mais sucessos dos protagonistas do livro a serem contados no futuro, numa série chamada "Brasiliana Steampunk". A ver.
[início: 01/10/2014 - fim: 03/10/2014]
"A lição de anatomia do temível Dr. Louison", Enéias Tavares, Rio de Janeiro: editora Casa da Palavra (Grupo Leya) selo Fantasy, 1a. edição (2014), brochura 16x23 cm., 303 págs., ISBN: 978-85-7734-489-5

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

o olho

Em "O olho" Nabokov explora alguns de seus temas recorrentes, como os de identidade, duplo e subjetividade. Originalmente fez parte de um conjunto de contos, mas o próprio Nabokov entendia esse texto como um pequeno romance, tanto em experimentalismo como em extensão. Cronologicamente é a quarta de suas narrativas mais longas. Foi composta em 1930 em Berlim e nesse ano publicada em uma revista para expatriados russos de Paris chamada Sovremennyya Zapiski. Em 1965 seu filho Dimitri a traduziu para o inglês e ao texto foi acrescentado um prefácio assinado pelo próprio Nabokov, onde ele discute a eventual perenidade de seu trabalho após 35 anos, bem como as circunstâncias de sua produção e interpretação. Nabokov apresenta um narrador em primeira pessoa (Smurov, um jovem emigrante russo na Berlim dos anos 1920) que se suicida logo no início do texto, após ter sido espancado por um sujeito furioso (podemos acreditar ou não que o suicídio se consumou, não importa). A partir daí o que se lê são trechos alternados em primeira e em terceira pessoa, onde o leitor é apresentado à personalidade e ao comportamento de Smurov. O narrador em primeira pessoa louva suas qualidades e aventuras, sua capacidade de enganar a todos com quem convive, seus amores, o mistério de suas reais intenções e planos. O leitor percebe logo que esse narrador é um mentiroso compulsivo, mas fica curioso sobre seu estado (afinal ele pode ser um fantasma, já estar morto, ou ser apenas um pobre diabo louco que sobreviveu a uma tentativa de suicídio). O narrador em terceira pessoa explicita as contradições de Smurov, faz transparecer ao leitor o quão mesquinho e miserável é o protagonista, mas não o condena ou é moralizante (Nabokov sabe o quão má é a literatura que deixa de ser arte e se traveste de ferramenta de engenharia social). Sem também apelar para malabarismos de interpretação psicológica Nabokov alcança com humor refinado mostrar-nos um processo de dissociação, onde os delírios de grandeza e a poderosa capacidade do ser humano em iludir-se completamente apenas desnuda que sempre enganamos nós mesmos quando imaginamos enganar todos os demais.
[início: 18/09/2014 - fim: 23/09/2014]
"O olho", Vladimir Nabokov, tradução de José Rubens Siqueira, Rio de Janeiro: editora Objetiva / Selo Alfaguara (Grupo Prisa), 1a. edição (2011), brochura 15x23 cm., 107 págs., ISBN: 978-85-7962-098-0 [edição original: Соглядатай, Sogliadatai (Paris: Russian Annals Publishing House) 1938 - em russo; The Eye (London: Phaedra) 1965 - em inglês, traduzido por Dimitri Nabokov]

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

fim

De Rafael Sica só conhecia o impressionante "Ordinário" e suas tiras no jornal Folha de São Paulo. Meses atrás fui conferir os trabalhos do Paulo Chagas na edição da Parada Gráfica (feira de expositores e editores de publicações independentes que acontecia ali no Museu do Trabalho de Porto Alegre) e eis que vi don Rafael Sica mascateando suas coisas. Falei rapidamente de minha admiração por seu trabalho e do quanto achava surpreendente um autor respeitado como ele estar ali (uma surpresa muito tola a minha, mas sou mesmo o menor dos anões desta paróquia quando o assunto é entender quem é mesmo que paga os tais almoços grátis de que falava o Milton Friedman). Bueno. "FIM" é um "Fácil e Ilustrado Manifesto" de histórias sem pé nem cabeça, uma série de quarenta das narrativas visuais que só o Sica sabe fazer. Elas foram publicadas originalmente em uma revista eletrônica, a Beleléu, que é também um selo de publicações independentes, aberto a experimentações e aventuras gráficas. Cada uma das páginas apresenta um conjunto de cinco vinhetas amalucadas que o leitor pode ou não tentar interpretar racionalmente (o Sica antecipa que não existe ordem nem tampouco sentido lógico ou intencional nelas). Elas lembram um teste de Rorschach geometrizado, só que não há uma chave para interpretar a aplicação deste "teste de Sica", nem para entender a dinâmica de associações e leituras que cada um pode fazer a partir delas. Além de na Beleléu as propostas gráficas de Rafael Sica podem ser encontradas em uma galeria do Flickr: E bom divertimento. FIM.
[início/fim: 29/07/2014]
"Fim: Fácil e Ilustrado Manifesto", Rafael Sica, Rio de Janeiro: Bebeléu, 1a (e última) edição (2014), brochura 10,5x15 cm., 44 págs., sem ISBN

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

luna caliente

Essa impressionante novela conquista o leitor na primeira frase: "Sabía que iba a pasar; lo supo en cuanto la vio." A história se passa em Formosa, na região do Chaco argentino, próxima a fronteira com o Paraguai. Ramiro, um sujeito de trinta e poucos anos, retorna a Argentina após ter estudado na França (e de ter se casado e se separado por lá). A Argentina está - como quase sempre - sob regime militar (é 1977), mas a presença da ditadura não se advinha naquele norte provinciano, muito afastado da capital. Ramiro é convidado por um médico importante, antigo amigo de seu pai, para um jantar numa noite quente de lua cheia. Ele fala de seus planos de dar aulas em uma universidade local e ajudar sua mãe, viúva, mas a conversa e o jantar seguem como num transe, pois desde o momento em que chegou a fazenda de seu anfitrião Ramiro percebeu-se enfeitiçado por uma garota de treze anos, Araceli. Os sucessos que Mempo Giardinelli faz seu narrador contar são mais ou menos previsíveis, trata-se afinal da história de uma paixão desmedida, grega, bíblica, shakespeariana, mas as fórmulas que ele inventa surpreendem o leitor o tempo todo, não dão trégua, de forma que ficamos inevitavelmente com o livro nas mãos até chegar a seu desfecho. Gracias a don Tailor Diniz por essa certeira recomendação. Vale.
[início/fim: 24/09/2014]
"Luna Caliente", Mempo Giardinelli, Madrid: Alianza editorial (Grupo Anaya), 2a. edição (2014), brochura 13x20 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-206-8306-5 [edição original: México: Editorial Oasis (serie Lecturas del Milenio, Premio Nacional de Novela) 1983]