sexta-feira, 31 de julho de 2015

foe

"Foe" foi publicado originalmente em 1986. Coetzee constrói uma história que brota do "Robinson Crusoe", de Daniel Defoe, publicado em 1719. Não se trata de uma apropriação simplista dos dois conhecidos personagens do folhetim de Defoe: o náufrago Crusoe e o nativo Sexta-Feira (Friday). O que Coetzee faz é muito mais poderoso; exemplifica o que é metalinguagem, metaliteratura; brinca com as divisões clássicas das narrativas de ficção, num romance realmente instigante. Não consigo registrar algo sobre esse livro sem me abster de contar quase tudo de sua trama e desfecho, portanto pare aqui caso não seja o tipo de leitor que goste de antecipações selvagens do enredo de um romance (muito embora eu entenda que saber sua versão da história - principalmente porque todos sabem algo da história original de Dafoe, mesmo sem a terem lido - é apenas um detalhe na construção do romance de Coetzee). São três capítulos e uma espécie de coda (as cinco incríveis páginas finais). No primeiro capítulo acompanhamos a narrativa de uma mulher, Susan Barton. Ela conta para um ouvinte que nunca se manifesta as aventuras pelas quais passou desde que saiu da Inglaterra em busca de sua filha. Ela vive algum tempo no Brasil (em Salvador), embarca de volta a Bristol em um navio português cujos marinheiros se amotinam, matando seu capitão e abandonando-a nas proximidades de uma ilha, onde encontra dois velhos náufragos (um inglês chamado Cruso e um nativo chamado Friday). Após um ano, em que passa frustadamente tentando entendê-los, Susan e os dois são resgatados e levados de volta à Inglaterra. No caminho Cruso morre e ao chegar ela decide contratar os serviços de um escritor para contar sua história na ilha (ela imagina ganhar dinheiro suficiente para enviar o nativo Friday de volta à África - além de ficar famosa). No segundo capítulo o leitor encontra as cartas que Susan escreve para um arredio Sr. Foe. Se no primeiro capítulo é Friday quem não tem voz, nada narra, nunca se manifesta (pois teve sua língua cortada quando garoto), nesse segundo capítulo é Foe quem nunca contesta as indagações de Susan, jamais responde suas cartas ou dirime suas dúvidas sobre o andamento da produção do livro com suas aventuras. Susan e o leitor são apresentados a uma garota que afirma ser sua filha desaparecida, mas ela não a reconhece como tal. Segundo o teor das cartas de Susan Foe parece mais interessado nos detalhes de sua vida no Brasil, mas sobre esse assunto ela é reticente, recusa-se a contar. Susan (sempre acompanhada de Friday) admite que sua capacidade de expressão é limitada, que aquilo que se recorda dos tempos de náufraga talvez seja mesmo pouco para sustentar o interesse dos leitores. No terceiro capítulo Foe e Susan se reencontram (Foe vive escondido, tem problemas legais com as autoridades, relembra que esteve preso). Os dois continuam em seu impasse. A curiosidade de Foe é sobre o passado de Susan, enquanto a essa só os trabalhos de Cruso e sua relação com Friday na ilha interessam. Ambos, cada um a seu modo, tentam fazer Friday aprender a escrever e relatar afinal sua versão da história. Susan se imagina uma Musa a inspirar o escritor. Foe se entende como uma prostituta escravizada pela literatura. Se o livro terminasse assim o leitor ficaria apenas com seus temas mais óbvios: as questões de poder e de linguagem, de identidade e gênero, a questão colonial, o papel da escravidão, do desejo e da liberdade. Mas o leitor encontra ainda um curto quarto capítulo, uma coda final com duas passagens breves (que eu, escravo de minhas associações selvagens, entendo como uma repetição "Dal Segno al Coda" e outra "Da Capo al Coda", como se faz ao lermos uma partitura). Nelas o narrador é obviamente distinto daquele dos três capítulos anteriores. As imagens e o que se apresenta nelas de narrativa lembra as tentativas que o próprio leitor faz quando termina um romance complexo, que exige dele um esforço de imaginação para o entendimento (como se fosse possível ao entendimento construir-se sem racionalizações). São duas passagens belíssimas, que li várias vezes tentando extrair delas algo mais do que o prazer estético. Talvez eu deva empreender um projeto de releitura dos romances de Coetzee, talvez em ordem cronológica desta vez, para ver se aprendo algo mais. Logo veremos. 
[início: 28/07/2015 - fim: 29/07/2015]
"Foe", J. M. Coetzee, tradução de Alejandro García Reyes, Barcelona: editorial Random House Mondadori (Debolsillo - Contemporánea), 2a. edição (2013), brochura 12,5x19cm., 157 págs., ISBN: 978-84-9793-559-3 [edição original: Foe (New York: Viking Press) 1986]

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