quinta-feira, 10 de setembro de 2015

hamlet

Quando me preparava para ler essa tradução do Hamlet procurei lembrar qual era a que havia lido pela primeira vez. Recordo-me bem da capa dos pequenos volumes - tratava-se de uma coleção integral das obras de Shakespeare, mas não alcanço lembrar do nome do tradutor. Paciência. Descobri que já foram feitas pelo menos dez traduções para o português praticado no Brasil (as de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Carlos Alberto Nunes, Adriana de J. Buarque, Carlos Almeida Cunha Medeiros, Oscar Mendes, Geraldo de Carvalho Silos, John Milton, Ana Amélia Carneiro de Mendonça, Millôr Fernandes e a José Roberto O´Shea). Recentemente o poeta e professor Lawrence Flores Pereira publicou a sua. Trata-se de uma tradução que combina várias ambições, compromissos desafiadores, que certamente lhe cobraram extrema habilidade e testaram sua experiência: Lawrence mantém o mesmo número de versos do original (utilizando-se do que ele chama de alexandrinos atonais), evitando com esse procedimento transbordamentos; mantém o coloquialismo nos momentos que o original o mantém, alcançando que cada personagem tivesse em português a sua própria voz (a voz que Shakespeare deu a elas); faz um uso mais rico do léxico português; explora muito bem o contraste entre prosa e verso sempre presente nas obras de Shakespeare; respeita o ritmo do original; e produziu um texto para ser encenado de fato, um texto que pode ser lido em voz alta ou declamado com naturalidade (cabe dizer que uma primeira versão dessa tradução já foi testada com sucesso em uma montagem sob a direção de Luciano Alabarse, em Porto Alegre, há cinco anos). Gostei muito do texto, da leitura dos cinco atos da peça, de reencontrar aqueles bizarros personagens, que parecem sempre me convencer da necessidade de seus atos terríveis. O volume inclui uma série de mimos (típicos desta coleção Penguin Classics Companhia das Letras): (i) uma introdução, assinada pelo tradutor, que dá conta de aspectos históricos e teatrais das obras de Shakespeare; (ii) um famoso ensaio do poeta e dramaturgo Thomas S. Eliot (Nobel de 1948), onde ele alerta para uma espécie de encantamento que a peça provoca nos leitores (principalmente naqueles cujas mentes de natureza criativa, por falta de poder criativo, dedicam-se à crítica), encantamento que os faz esquecer dos problemas técnicos que a peça tem (não os problemas que o personagem Hamlet tem); (iii) duas notas breves que especificam as fontes e o compromisso tradutório utilizado; (iv) as referências bibliográficas fundamentais; e por fim, aquilo que acredito ser o mais generoso dos presentes, (v) extensas notas de tradução, que ocupam aproximadamente um terço do volume, onde ora se argumenta sobre as soluções adotadas na tradução de passagens específicas, ora se fala da conveniência ou não de um determinado procedimento cênico, mas que também oferece explicações sobre aquilo que é cifrado ou enigmático demais no original, como certos antropônimos, topônimos, passagens que fazem alusão a mitologia, história e sociologia. Essas últimas notas fazem a festa de um leitor curioso. O projeto de tradução do Lawrence pode ser encontrado na Revista de Literatura e Linguística Eutomia (ISSN 1982-6850). Agora cabe um último parágrafo, um tanto mais cabotino, que você leitor apressado, pode abandonar: Como é bom voltar ao texto quando queremos entender algo mais da engenharia de uma peça, quando tentamos decifrar detalhes dos diálogos e das referências cifradas com as quais os autores as povoam. Mas como contrastar essa experiência de leitura com a experiência teatral? Assim como não é incomum um sujeito nunca ter lido Freud para em algum momento da vida discursar com autoridade sobre Complexo de Édipo é bastante provável que a maioria daqueles que nunca leram um verso que seja de Shakespeare saibam muito bem quem foi Hamlet. O personagem, a peça, as passagens mais famosas e o conflito básico do livro fazem parte da cultura de nosso tempo. Recebemos ao longo da vida tantas referências sobre ele que acabamos por acreditar que o livro já foi mesmo lido, muito tempo atrás, só não sabemos precisamente quando. Claro, nada supera a experiência de ver a peça bem encenada, num palco ou, mesmo com algum prejuízo numa produção para cinema ou televisão. No caso dos dramas clássicos a experiência visual sempre é mais vívida que a leitura silenciosa, nos aproximamos melhor daquilo que Wagner chamava de arte total e é por isso que dificilmente esquecemos aquelas horas de encantamento numa sala escura. Como disse lá no início não me lembro quando li Hamlet pela primeira vez, mas lembro-me sim de quando vi a versão cinematográfica dirigida e protagonizada por Laurence Olivier (ainda em São Bernardo, no final dos anos 1970) e também de uma montagem teatral que assisti em Madrid (em 1990, diz o livro/catálogo bilíngue utilizado na peça que ainda tenho em meus guardados). Só de escrever essas lembranças já me sinto novamente transportado para aquele tempo de maravilhas, de alegrias e experiências prazerosas sem fim, "drowning in honey, stingless", como nunca canso de repetir. 
[início: 22/08/2015 - fim: 30/08/2015]
"Hamlet", William Shakespeare, tradução de Lawrence Flores Pereira, São Paulo: editora Schwarcz: Penguin Classics Companhia das Letras, 1a. edição (2015), brochura 13x20 cm., 318 págs., ISBN: 978-85-8285-014-5 [edição original: The Tragicall Historie of Hamlet, Prince of Denmarke (London) first quarto, 1603; second quarto, 1604/1605; first folio, 1623; Harold Jenkis (org.), Hamlet, Arden Shakespeare, second series (New York: Routledge) 1989]

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