sábado, 29 de agosto de 2015

a gorda do tiki bar

Dalton Trevisan já tem 90 anos, continua recluso em sua Curitiba fundamental, escrevendo, insultando desafetos e ganhando prêmios. Meses atrás a revista Cândido (editada pela biblioteca pública do Paraná) apresentou uma boa matéria sobre ele (e seu confrade Rubem Fonseca, igualmente nonagenário). Nesse "A gorda do Tiki bar", de 2005, estão reunidos onze contos francamente pornográficos. Acho que foi o Ian McEwann (ou o Martin Amis, quem sabe?) quem disse que um bom teste para avaliar as qualidades de um escritor é ler como ele inclui relações sexuais em suas narrativas. Pois Daltan Trevisan jamais ganharia o Bad Sex Award (na verdade acho que nenhum escritor brasileiro ganharia dos ingleses nessas apostas puritanas). As histórias dele são realmente excitantes e divertidas. Gostei sobretudo de "Prova de redação", onde se narra os sucessos da paixão de uma professora de português por um péssimo aluno do ensino médio, de "Rita Ritinha Ritona" que descreve como uma garota bonita e sedutora se transforma por conta de um namorado conservador e de "Duas normalistas", onde duas amigas competem para descobrir qual delas ganha mais prazer numa tarde de orgia. Esse livro peguei emprestado com o Lippold há meses. É hora de devolver (estaremos algo cúmplices, como quando devolvíamos aqueles catecismos pornográficos do Carlos Zéfiro, tempos e tempos atrás). 
[início: 25/08/2015 - fim: 26/08/2015]
"A gorda do Tiki bar", Dalton Trevisan, Porto Alegre: editora L&PM (pocket #476), 1a. edição (2005), brochura 11x18 cm., 98 págs., ISBN: 978-85-254-1475-1

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

as pequenas virtudes

Quando encontramos um livro por acaso (um livro antigo, dos anos 1960, apesar de ter sido traduzido para o português somente agora) e descobrimos nele todo um conjunto de idéias e passagens admiráveis nos perguntamos os porquês de nunca termos ouvido nada sobre sua autora antes. Como é vasto o mundo dos livros. Quão tolos somos por imaginar que um dia poderemos ler tudo o que importa e é bom. Bueno. Nunca havia lido nada de Natalia Ginzburg. Neste "As pequenas virtudes" estão reunidos onze ensaios curtos, que brotam de sua biografia e memória, mas que têm um refinamento literário surpreendente. O texto mais antigo é de 1944, o mais recente de 1962. Com a exceção de um todos haviam sido publicados originalmente em revistas e jornais italianos. As seis histórias reunidas num primeiro conjunto são registros de experiências pessoais duras: a rotina de uma família que vive confinada nos tempos da segunda grande guerra; o despojamento de preferir usar apenas sapatos gastos, como sua mãe fazia antes dela; a lembrança da personalidade difícil de um amigo (Cesare Pavese) que comete suicídio; apontamentos de um caderno de viagem, onde se descreve uma melancólica Inglaterra e também os hábitos alimentares dos ingleses; um texto onde ela explica as diferenças entre seu comportamento e o de seu marido. O segundo conjunto de ensaios reúne reflexões sobre a complexidade da vida. Parece que estamos a conversar com uma pessoa experiente, não um professor, mas alguém cujas opiniões respeitamos porque ele argumenta e reflete, sintetiza e exemplifica, mas sabe que não se pode esgotar e ser definitivo sobre aquele assunto. Ela faz duros comentários sobre as diferenças entre sua geração (ela viveu entre 1916 e 1991) e a de seus pais, ou seja, a geração daqueles responsáveis por levar a Itália para o desastre da segunda grande guerra; apresenta um longo ensaio sobre o seu ofício, que é o de escrever e suportar as consequências deste hábito; fala sobre o silêncio e a quase impossibilidade de entender completamente um outro indivíduo; faz uma viagem biográfica da infância e maturidade, uma viagem de auto conhecimento, sem ser cabotina ou condescendente; fala de como pensa ser correto (ou possível) ensinar algo aos filhos. Como não ficar admirado por uma autora que escreve algo assim potente: "A Itália é um país pronto a dobrar-se aos piores governo. É um país, como se sabe, onde tudo funciona mal. É um país onde reina a desordem, o cinismo, a incompetência, a confusão. E, apesar disso, se sente pelas ruas a inteligência circular como um sangue que pulsa. É uma inteligência que evidentemente não serve para nada. Não é usada em benefício de nenhuma instituição que possa melhorar minimamente a condição humana. Entretanto aquece o coração e o consola, ainda que se trate de um conforto enganador e, talvez, insensato". Quando escrevi noutro dia o quanto estava gostando de ler "As pequenas virtudes" doña Denise Bottmann me disse que Natalia Ginzburg foi mãe do Carlo Ginzburg, historiador de quem li o surpreendente "Os queijos e os vermes" no início dos anos 1980. Ulalá, genética é mesmo destino! Deve haver outras coisas dela já traduzidas por aí. É tempo de procurar. 
[início: 20/08/2015 - fim: 25/08/2015]
"As pequenas virtudes", Natalia Ginzburg, tradução de Maurício Santana Dias, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2015), brochura 13x20 cm., 158 págs., ISBN: 978-85-405-0910-8 [edição original: Le piccole virtù (Torino: Einaudi) 1962]

sábado, 22 de agosto de 2015

berlim

Há livros que descrevem cidades como se seus autores fossem flâneurs dedicados, aquelas generosas criaturas que partilham suas observações de uma viagem e que invejamos talvez não discretamente. Há também livros onde o autor é um anti-flâneur, pois faz uma espécie de serviço sujo para o leitor, vai a lugares, conversa com pessoas e vê a realidade de coisas que talvez nossa sensibilidade naturalmente débil ou romântica demais não nos permitiria jamais perceber adequadamente. É o que Joseph Roth faz com a Berlim nos textos reunidos nesse livro. Suas crônicas foram publicadas em jornais de Berlim, Munique e Frankfurt do final da primeira grande guerra (textos escritos sobretudo na primeira metade dos anos 1920) até a tomada constitucional do poder alemão pelo nazismo (1933). O sujeito é preciso, claro e objetivo em suas digressões. Trata-se de um jornalista icônico, mítico, clássico, que nunca se perde na aparência das coisas, sabe procurar a realidade tanto nos salões do Reichstag quanto nos cabarés mais decadentes e sombrios. Mas são crônicas de um escritor habilidoso, de um estilista, de alguém que equilibra informação e qualidade literária. Ele é quase sempre irônico, mas sem ofender ou menosprezar ninguém (talvez seja sarcástico mesmo apenas com policiais e detetives que seguem regras e códigos obsoletos). A Berlim do início dos anos 1920 está tomada de emigrantes muito pobres, refugiados do leste europeu, mas é também um lugar efervescente, com vários  jornais diários, intensa atividade artística, literária, mundana. Os textos estão organizados em blocos temáticos: há crônicas sobre os refugiados e o bairro judaico; sobre as obras viárias e a construção de arranha-céus que modificam a velha capital prussiana; sobre os burgueses e boêmios, sobre seus hábitos; sobre a indústria de entretenimento (inclusive o comércio sensual); sobre os políticos e a política daqueles dias. Saber um tanto da história da Alemanha ajuda a entender as alusões e comentários de Roth (lembro sempre do bom "História concisa da Alemanha", de Mary Fulbrook). O último artigo do livro é de 1933, já escrito e publicado em Paris, para onde Roth exilou-se, antecipando as terríveis consequências da ascensão de Hitler ao poder (ele não contemporiza: "O mundo ameaçado e aterrorizado precisa se dar conta de que o ingreso do cabo Hitler na civilização européia significa não apenas o início de um novo capítulo na história do anti-semismo: longe disso! O que dizem os incendiários é verdade mas em outro sentido: esse Terceiro Reich é o início do fim! Ao exterminar os judeus, perseguem Cristo. Pela primeira vez os judeus não são assassinados por terem crucificado Jesus, mas por terem lhe dado vida."). Como muitos fascistinhas que vicejam hoje em dia no Brasil Hitler foi eleito democraticamente, mas foi um ditador desde o primeiro minuto em que assumiu o poder. A democracia é apenas uma palavra vazia quando no espírito de um sujeito - ou no de muitos partidos, como no caso brasileiro, - prospere apenas o desejo de escravizar mentalmente todos os cidadãos do país. O livro inclui um posfácio de Alberto Dines (que eu confesso não ter gostado nem um pouco, paciência). Haverá sim mais Joseph Roth por aqui. 
[início: 01/08/2015 - fim: 05/08/2015]
"Berlin", Joseph Roth, tradução de José Marcos Macedo, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / coleção Jornalismo literário), 1a. edição (2006), brochura 14x21 cm., 206 págs., ISBN: 978-85-359-0836-6 [edição original: Joseph Roth in Berlin: Ein Lesebuch für Spaziergänger (Köln: Verlag Kiepenheuer & Witsch) 1996]

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

accidente nocturno

Até onde fui capaz de entender (após ter lido dez ou doze romances de Patrick Modiano, ou seja, um terço apenas dos quase trinta que ele escreveu) sua obra é mesmo um mosaico onde cada volume nos oferece um entendimento melhor dos demais. Meu azar foi tê-los lido na ordem em que os encontrei e não na ordem cronológica de sua publicação (mas sabe-se lá se isso ajudaria). Paciência. "Accidente nocturno" remete o leitor às lembranças do curioso "Remissão da pena", um romance onde o narrador modianesco fala das aventuras que viveu no campo, longe dos pais, sob os cuidados de duas mulheres que de alguma forma estavam envolvidas com um grupo de contrabandistas, pessoas a margem da lei e da ordem daquela França que se curava das vicissitudes da segunda grande guerra no final dos anos 1950. Pois esse narrador, quarenta e tantos anos após dos sucessos desta infância, contados no "Remissão da pena", lembra-se de que quando ainda era jovem (quase emancipado juridicamente, aos vinte anos) sofreu um acidente automobilístico. Desta noite lembra-se vagamente que dividiu os cuidados médicos com a mulher que dirigia o carro que o atropelou (uma moça chamada Jacqueline Beausergent) e que foi transferido para uma sofisticada clinica particular após os primeiros cuidados em um posto público de saúde. Ao recuperar a lembrança do acidente lembra-se também que talvez um dos sujeitos que resolveu as questões burocráticas do acidente talvez seja o mesmo que ele conheceu quando criança no campo, uma espécie de gângster que num dia presenteou-o com uma cigarreira (que ele viria a descobrir ser roubada). O romance (Accidente nocturno) dá conta dos esforços que o narrador faz para encontrar a mulher o que o atropelou e de como essa busca explica algo das atividades e negócios escusos de seu pai durante o período de ocupação nazista da França (e também de seu turbulento relacionamento com o pai à época do atropelamento). O narrador dá conta de qual era seu método de prospecção de histórias (em bares, cafés e restaurantes parisienses da periferia da cidade); faz uma útil cronologia dos lugares onde morou ao longo da vida (informação seguramente fundamental quando da leitura de seus outros romances); explicita sua fé no acaso, nas coincidências, no emaranhamento que experiências temporalmente distintas têm. Romance curioso. Haverá outros Modianos por aqui, claro.[início: 15/07/2015 - fim: 01/08/2015]
"Accidente nocturno", Patrick Modiano, tradução de María Teresa Gallego Urrutia, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #879), 1a. edição (2014), brochura 14x22 cm., 140 págs., ISBN: 978-84-339-7909-4 [edição original: Accident nocturne (Paris: éditions Gallimard) 2003]

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

salões de paris

Quando soube da edição de "Salões de Paris" fiquei realmente entusiasmado. São vinte e duas crônicas, publicadas originalmente em jornais e revistas francesas e que foram reunidas em livro pela primeira vez ainda em 1927. A maioria (quatorze) das crônicas foram publicadas no jornal Le Figaro, entre 1903 e 1913, mas há também trabalhos mais antigos, dos anos 1890, publicados nas revistas Le Gaulois (um), Le Mensuel (cinco), Revue d'Art Dramatique (um), Revue Blanche (um). Metade das crônicas são assinadas por Proust. Nas demais foram utilizados pseudônimos que especialistas acreditam terem sido efetivamente criados por ele. Quem já teve a experiência de ler todo o ciclo "Em busca do tempo perdido" vai ter uma boa cota de alegrias. Ao menos oito dos textos são de fato narrativas ficcionais que foram adaptadas posteriormente nos volumes do ciclo (publicado originalmente entre 1913 e 1927). O leitor encontrará narrativas que lembram várias das passagens mais poderosas daquele ciclo: (i) a dos passeios do narrador com seus pais por dois caminhos (o de Swann e o de Guermantes); (ii) a descrição das virtudes (e vicissitudes) de sua avó; (iii) o retrato de um jovem valoroso (um Robert Saint-Loup ainda pálido); (iv) a associação entre uma menina e uma sebe de pilriteiros, as visitas que fazia a um parque parisiense para vê-la passear; (v) a vista oblíqua dos campanários de uma igreja no horizonte; (vi) o sonho de uma viagem há muito prometida pelos pais (para Florença aqui, mas que sabemos ser para Veneza na versão final do ciclo); (vii) as comodidades de um hotel de praia distante da Normandia; (viii) o reencontro de um narrador com uma velha amiga após anos de isolamento e as dificuldades da senhora em reconhecê-lo. Nenhum desses textos antecipa exatamente sua metamorfose em livro, mas é curioso lê-los e acompanhar sua gênese. O livro incluí também textos absolutamente mundanos: descrição dos vestidos, adereços e da melhor toalete da temporada; a lista interminável dos participantes de uma recepção em Versalhes; outra com várias dezenas de artistas plásticos que mereciam serem visto numa determinada época; hiperbólicas críticas literárias de livros aparentemente irrelevantes; comentários ora jocosos e ferinos ora no limite da bajulação dos salões musicais e literários de que participa. A leitura é sempre divertida, aprendemos um bocado e recordamos aquela atmosfera tão original criada por Proust. Apesar da edição do livro ser realmente bonita de se ver (com lombadas douradas, uma capa bem produzida e vários outros mimos) o livro é frágil demais. Acredito que a capa deveria ser colada de outra forma. Não acreditei quando vi um livro tão bonito perder a capa tão rapidamente. Eu incluiria também notas identificando exatamente que passagens das crônicas acabaram sendo incorporadas (ao menos em parte) na versão final dos romances do ciclo (teimosos contumazes como eu irão até seus guardados e farão a procura para eventualmente cotejar as passagens, mas os editores poderiam facilitar a vida daqueles não completamente familiarizados com os livros). De qualquer forma Proust sabe se defender sozinho. Vale.
[início: 18/08/2015 - fim: 17/08/2015]
"Salões de Paris: Marcel Proust", Marcel Proust, tradução de Caroline Fretin de Freitas e Celina Olga de Souza, São Paulo: editora Carambaia, 1a. edição (2015), capa-dura 12x20 cm., 208 págs., ISBN: 978-85-69002-03-1 [edição original: Chroniques (Paris: La Nouvelle Revue Française / Gallimard) 1927]

terça-feira, 18 de agosto de 2015

el ruletista

Mircea Cartarescu foi a mais exótica das sugestões de leitura que me fizeram neste ano. "El Ruletista" faz parte de "Nostalgia", um volume de contos que alcançou bastante sucesso desde sua publicação, primeiro em 1989 e finalmente, já em sua forma definitiva, em 1993. O conto é realmente muito bom. Não posso contar nada da trama sem roubar de um eventual leitor o prazer de descobrir por si só as chaves da narrativa. A tradutora dessa versão para o castelhano assina também um prefácio onde conta algo das circunstâncias da publicação do livro. Ela fala dos problemas decorrentes da censura e do controle editorial imposto pela ditadura romena mesmo quando já se esfacelava após a queda do Muro de Berlim. Ela assegura ser Cartarescu o mais importante autor romeno de sua geração (ele nasceu em 1956) e indica vários outros trabalhos dele (que publica poesias e narrativas longas, além de dedicar-se ao ensino universitário). Procurarei a versão integral dos contos em "Nostalgia" e também algum dos romances de Cartarescu, seguro que sim. 
[início - fim: 29/07/2015]
"El Ruletista", Mircea Cartarescu, tradução de Marian Ochoa de Eribe Urdinguio, Madrid: editorial Impedimenta, 1a. edição (2010), brochura 12x18 cm., 62 págs., ISBN: 978-84-15130-04-8 [edição original: Ruletisul, extraído de Noltalgia (Bucarest: Humanitas) 1993]

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

o véu erguido

"O véu erguido" é uma história curta de terror psicológico, uma novela fantástica, publicada originalmente em meados do século XIX. É talvez a menos conhecida das histórias vitorianas típicas deste gênero, como os clássicos "Frankstein" (de Mary Shelley), "O estranho caso do Dr. Jekyll and Mr. Hyde" (de Robert Louis Stevenson), "Drácula" (de Bram Stoker) e "A outra volta do parafuso" (de Henry James), das quais é aparentada. Acompanhamos a história de um sujeito que afirma ter o dom da clarividência e que sua vida foi definida pelos desdobramentos daquilo que conseguia descobrir antecipadamente de seu futuro (um fardo quase insuportável, esgotador, pois trata-se de uma espécie de vampirismo que opera apenas quando seus interlocutores estão próximos dele). Pode-se ler o livro como uma descrição sutil dos estados mentais de um sujeito que padece de uma doença terrível e tem a dolorosa consciência de sua condição, ou ainda como os procedimentos analíticos (de auto análise) de alguém que tenta explicar, sem justificar, como se comporta uma pessoa que canaliza e administra seu enorme egoísmo, manipulando e fantasiando a realidade quando quer alcançar objetivos condenáveis. Há passagens realmente boas no livro. George Eliot (pseudônimo de Mary Anne Evans, mais conhecida por seus últimos romances "Middlemarch" e "Daniel Deronda") soube envolver o leitor na fantasia de seu protagonista e até que nos apiedemos de seu destino. Esse livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing), da qual já li "A briga dos dois Ivans", "A lição do mestre", "O colóquio dos cachorros" e "Michael Kohlhass".
[início: 30/07/2015 - fim: 31/07/2015]
"O véu erguido", George Eliot (Mary Anne Evans), tradução de Lilian Jenkino, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2015), brochura 13x18 cm., 118 págs., ISBN: 978-85- 61578-46-6 [edição original: The lifted veil (Edinburgh: Blackwood's Magazine) 1859]

domingo, 16 de agosto de 2015

jerusalém

Ainda no início de 2014 vi vários episódios de "A Culinária Mediterrânea de Yotam Ottolenghi", um programa de culinária realmente interessante. Ottolenghi é um chef israelense radicado em Londres, proprietário de restaurantes e mercearias sofisticadas. Ganhei esse belo volume da Cassia, no Natal do ano passado. Ottolenghi assina o livro com Sami Tamimi, um chef palestino também radicado em Londres com quem Ottolenghi trabalha há pelo menos uma década. O livro é fácil de consultar, as receitas são bem detalhadas e as reproduções fotográficas muito bonitas. As fotografias não são apenas dos pratos que são descritos. Há também um bocado de Jerusalém, cidade onde Tamimi e Ottolengui nasceram mas onde nunca se encontraram (por motivos óbvios). Os dois se conheceram somente quando adultos, já em Londres. Mais que um livro de receitas "Jerusalém" é uma registro muito digno da história de duas culturas, duas sociedades, que tem muita coisa em comum, muito mais do que gostariam de admitir, mas que histórica e politicamente estão condenadas a destruir-se ou, ao menos, prejudicar-se mutuamente por muitos anos ainda. O livro tem a assinatura dos dois famosos chefs, mas é de fato uma criação coletiva. Eles explicitam o nome daqueles colaboradores que fizeram o trabalho fundamental de entrevistas, compilação e seleção de receitas, múltiplas experimentações, adaptações de ingredientes e sugestões que acabaram sendo incorporadas ao livro. Lembrei do "Cozinha judaica de Maria", que já resenhei aqui e que é um livro sobre a culinária judaica onde se oferece o mesmo bom equilíbrio entre histórias, cultura e receitas. Enfim, meus "Latkes" ficaram um bocado melhores depois de usar esse livro; meus "Gefilte fish" nem tanto, mas aprendi várias combinações novas para saladas e fiz uns "Sabich" que ficaram realmente bons. Nada mal. Cabe registrar ainda que o site http://www.ottolenghi.co.uk/ é bastante generoso nas descrições das receitas, ingredientes, cardápios, sugestões das técnicas utilizadas por Ottolenghi e Tamimi. E vamos em frente (para a cozinha, talvez!)
[início: 25/12/2014 - fim: 01/08/2015]
"Jerusalém: Sabores e receitas", Yottam Ottolengui e Sami Tamimi, tradução de Eni Rodrigues, São Paulo: Editora Schwarcz (Panelinha), 1a. edição (2014), capa-dura 20x28 cm., 320 págs., ISBN: 978-85-67431-04-8 [edição original: Jerusalem: A Cookbook (Berkeley/USA: Ten Speed Press / Crown  Publishing Group / Random House) 2012]

sábado, 15 de agosto de 2015

viajes y otros viajes

Neste interessante "Viajes y otros viajes" estão reunidos mais de setenta textos curtos de Antonio Tabucchi publicados originalmente em jornais ou revistas. O período de publicação é longo, os textos mais antigos são de 1984, os mais recentes de 2009. Tabucchi os chama de "ilhas de um arquipélago flutuante" e afirma que os textos nunca foram pensados original e propositadamente como narrativas de viagens, com intuito de serem um dia publicadas, mas que de fato surgiram, naturalmente e vívidas, após algumas de suas longas viagens. O verdadeiro viajante não é aquele que acumula fotografias e registros, mas sim aquele que recupera tudo o que importa de um lugar, duma cidade, dum país quando está sós consigo mesmo, quando volta para o território do hábito e da normalidade, tempos depois das viagens que fez. Os textos estão organizados em capítulos temáticos. Num primeiro capítulo encontramos vinte e seis crônicas ligeiras que se passam em doze países diferentes: Itália; França; Grécia; Suiça; Turquia; Espanha; Japão; Egito; Estados Unidos; México; Canadá e Brasil. Tabucchi sabe ser generoso e também cruel. Rimos de sua ironia e avaliamos sua alegria com as coisas simples que descobre. Os três capítulos seguintes reúnem histórias e experiências surgidas na Índia (país que ele explora como um brinquedo novo, intuitivamente); na Austrália (numa abordagem mais cerebral, quase como num guia de viagens, objetivamente) e em Portugal (o mais pessoal e lírico conjunto de todo o livro, demonstrando os porquês de Portugal ter sido o país que adotou como segunda e fundamental pátria). No último capítulo estão reunidas histórias que envolvem leituras e/ou experiências de terceiros, onde ele faz crítica literária, reflete sobre a obra de autores que o estimularam, lembra de lugares que visitou também através dos livros. Há muitas menções ao Brasil e a brasileiros (ele fala não apenas de poetas como Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes e escritores como Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Oswald de Andrade, mas também de Berta Ribeiro (uma etnóloga), de Cândido Rondon, de Aleijadinho). Ao contar suas viagens Tabucchi fala de seus livros mais conhecidos (Noturno indiano; Requiem; Anjo negro; Afirma Pereira), das palestras que fez em congressos acadêmicos, das idéias que desenvolveu ou ouviu em mesas de restaurantes. O jovem escritor e jornalista italiano Paolo Di Paolo assina uma espécie de entrevista, onde as perguntas são retiradas dos textos originais de Tabucchi, de sorte que, afinal, é ele próprio que desenvolve as questões que seus personagens fizeram. Se tivéssemos o talento de Tabucchi talvez seria num livro como esse que registraríamos aquelas experiências que acumulamos e que desaparecem, aí de nós, a cada dia. 
[início: 05/08/2015 - fim: 13/08/2015]
"Viajes y otros viajes", Antonio Tabucchi, tradução de Carlos Gumpert (edição de Paolo Di Paolo), Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #802), 1a. edição (2012), brochura 14x22 cm., 271 págs., ISBN: 978-84-339-7832-5 [edição original: Viaggi e altri viaggi (Milano: Giangiacomo Feltrinelli Editore) 2010]

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

fuga sin fin

O interessante nos bons escritores é que pouco importa quando e como o sujeito inventa e publica suas histórias, elas continuam poderosas e seminais mesmo muitos anos após a morte deles. É o caso desse interessante "Fuga sin fin" de Joseph Roth, de quem já li também "Hotel Savoy" e "A lenda do santo beberrão". Roth é narrador e personagem da história. Seu truque literário é fazer crer que apenas compilou e deu forma ficcional aos apontamentos e memórias de um amigo seu, Franz Tunda, filho de uma próspera família de burgueses austríacos, noivo de uma rica herdeira, militar em serviço do Império Austro-Húngaro e que é feito prisioneiro pelos russos durante a primeira grande guerra. Por mais interessante e movimentada que seja a história de Tunda o que Roth oferece ao leitor é a descrição do esgotamento dos valores e pressupostos da Europa no período entre as duas grandes guerras do século passado. Roth (que publica esse curto romance originalmente em 1927) antecipa as contradições e circunstâncias que iriam gerar o nazismo. Seu personagem,Tunda, após fugir de seus captores, passa muitos meses isolado na Sibéria; assume provisoriamente a identidade de um polonês, Baranowicz; luta pelo exército vermelho durante a Revolução Soviética; incorpora-se na máquina de propaganda soviética (por conta de sua boa educação e facilidade com línguas); enamora-se de duas garotas que também lutam pela revolução. Num dia, ao fazer o papel de guia para um grupo de franceses que inspecionava as instalações petrolíferas de Baku (onde é hoje o Azerbaijão) ele dá-se conta que precisa sair do leste europeu e voltar para seu país (que não mais existe, cabe lembrar). Com esse início poderíamos pensar que tratar-se-ia de uma adaptação da célebre novela de Balzac (O Coronel Chabert), onde acompanhamos a história de um homem que volta das guerras napoleônicas para encontrar na França sua noiva e fortuna tomadas, sua identidade e glória negadas. Mas não. Roth faz Tunda voltar a condição de europeu ocidental, ilustrado, aceito socialmente (ele faz as pazes com um irmão, que tornou-se um respeitado maestro numa cidade do vale do Reno alemão; que conta histórias algo fantasiosas de seu exílio forçado pelas estepes russas; que conversa com seu amigo Joseph Roth nos cafés de Berlim; que discute sobre os valores socialistas e as perspectivas de implantação do comunismo por toda a Europa). Tunda viaja pela Alemanha, mas não se ilude com a propaganda de que ali tudo funciona, tudo é maravilhoso, todos são felizes. Seu destino está ligado a França, pois é lá que mora sua antiga noiva (agora casada) e também uma mulher sedutora e misteriosa que ele conheceu em seus dias em Baku. Em Paris ele experimenta novos encantamentos, novas maravilhas, mas assim como em Berlim ele não acredita naquele mundo de sonhos, prazeres, artificialismos. Tunda, o homem que adota Paris para viver é ainda jovem, pouco mais de trinta anos, mas é alguém sem profissão e sem amor, sem alegria ou esperança, sem ambição ou egoísmo. É um sujeito completamente supérfluo e dispensável, como o é a Europa que surgiu dos escombros da primeira grande guerra. Nas palavras de Tunda, "antes  de tentar conservar essa comunidade europeia de seus sonhos será necessário criá-la". Bom isso acabou acontecendo, após a segunda grande guerra. Mas o que Tunda não sabia é que pouco importa existir um aparato jurídico e social que justifique os valores de uma pretensa comunidade europeia, pois serão sempre os indivíduos, os homens, através de seus atos, votos, ações, os que irão inevitavelmente questionar (e eventualmente destruir) aqueles mesmos valores. Belo livro. 
[início: 06/08/2015 - fim: 07/08/2015]
"Fuga sin fin", Joseph Roth, tradução de Juan Luis Vermal (revisão de José Vivar), Barcelona: Acantilado Editorial, 1a. edição (2003), brochura 13,5x20,5 cm., 167 págs., ISBN: 978-84-96136-00-7 [edição original: Die Flucht ohne Ende (Berlin: Kurt Wolff Verlag) 1927]

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

three stories

Após ler o bom "Foe" decidi continuar um pouco mais no curioso universo de Coetzee, um escritor que não me canso de recomendar. Escolhi "Three Stories", que estava esperando sua vez em meus guardados há tempos. Estão nele reunidos três contos curtos. Todos já haviam sido publicados: o primeiro, "A House in Spain", numa revista de arquitetura (Architectural Digest) em 2000; o segundo, "Nietverloren", numa revista acadêmica (Preservation) em 2002 e o terceiro "He and His Man" como sua conferência de premiação do prêmio Nobel, em 2003. São três propostas interessantes. Em "A House in Spain" acompanhamos a autocomiseração de um escritor de meia idade e aparente sucesso profissional que adquire uma casa de verão na Catalunha. Amargo, ele compara a experiência de reformar a nova propriedade ao de se apaixonar por uma mulher (ou curar-se da separação de uma mulher). Em "Nietverloren" a amargura se intensifica. O narrador conta a história de um sujeito que volta à África do Sul com amigos, numa viagem de turismo, e que reflete sobre as transformações de seu país com o fim do regime de segregação racial. Sua memória de uma eira (o lugar usado nas fazendas para secar e debulhar cereais) desperta de conversas com a administradora de uma espécie de hotel-fazenda que, por sua vez, reclama das dificuldades econômicas do país, sobretudo dos territórios semi-desérticos da África do Sul conhecidos como Karoo. "He and His Man" é o maior dos três contos e o mais enigmático também. Coetzee (ou seu preposto narrador, que é o personagem Robinson Crusoe, de Daniel Defoe) discute o ofício de escrever, o "negócio" de escrever. Acompanhamos as reflexões cruzadas do escritor Daniel Defoe (His Man) e de Robinson Crusoe (He) sobre o papel de cada um na construção de um romance, de como conciliar o ofício de escrever (ou de ser escrito, inventado) com a vida prática, os afazeres e deveres de uma vida em sociedade, sempre sufocantes (ou suportar as limitações de uma vida de náufrago, que precisa sobreviver com poucos recursos, como a que Crusoe experimenta). Aparentemente é Crusoe quem escreve a vida de Dafoe. De qualquer forma os dois compartilham uma existência que é mais complexa que a de criador e personagem, a de senhor e escravo, a de um ente real e outro, ficcional, ou ainda, por fim, a de irmãos. Divertido. 
[início: 08/08/2015 - fim: 09/08/2015]
"Three stories", J.M. Coetzee, Melbourne (Australia): The Text Publishing Company, 1a. edição (2014) capa-dura, 11,5x19 cm., 71 págs., ISBN: 978-1-92217-256-2