terça-feira, 14 de março de 2017

a camisa do marido

São nove contos que gravitam o mundo das mulheres. A narradora conta histórias, colhe memórias de uma tia, de uma mãe, de uma madrasta, de uma irmã ou sobrinha; dá voz a uma aldeã, a uma menina, a um poeta, a um filho perdido. As tramas são engenhosas. Há histórias algo bíblicas, com ecos faulknerianos, narrativas de vingança, ciúme e morte; histórias literárias, uma que brinca com uma passagem do Quijote e outra que fala dos aborrecimentos de Camões; histórias de família, onde mistério e mentira torturam as gentes. Nélida Piñon cria personagens femininas que não são cabotinas, não comungam falsos heroísmos ou poderes mágicos. São reais, respiram o mesmo ar que nós, receberão o mesmo naco de terra para descansar. Nas histórias sentimos algo da aridez da meseta ibérica, do silêncio calmo dos lugares que fogem dos ruídos do mar, da escuridão da mata fechada que dá aos dias a extravagância do mundo dos sonhos. O último dos contos, "A desdita da lira", é o que mais gostei. Nele não encontramos uma protagonista feminina, como nos oito contos anteriores, mas senti a presença da Musa de Camões assombrando o conto. O velho poeta lambe as feridas da vida, parece lamentar a força do poema que publicou, pois conhece dele as mentiras, os excessos, o ufanismo besta que num turbilhão sempre a tudo destrói. Para ele (como antes, para Terêncio) nada do que é humano é estranho, porém, numa coda amarga, que o próprio Terêncio não previu, sabe que é mesmo muito estranha a alegria de viver.  Esses nove e curtos contos confessam a boa artífice que os engendrou. Vale. 
[início: 21/02/2017 - fim: 22/02/2017]
"A camisa do marido", Nélida Piñon, Rio de Janeiro: Editora Record, 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 158 págs., ISBN: 978-85-01-06633-6

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