sábado, 27 de maio de 2017

uma sensação estranha

Há mais de dez anos fiz uma viagem acompanhado de um pesado volume de Orhan Pamuk. Era "Meu nome é Vermelho", que não está registrado aqui, pois o li em 2004. À minha frente em uma fila para despachar bagagens num aeroporto estava um casal de turcos. Curiosos, eles perguntaram sobre minhas impressões do livro e vaticinaram ali mesmo que um dia ele receberia o Nobel, o que de fato aconteceu, apenas dois anos depois, em 2006. Com o tempo li "Neve", "O romancista ingênuo e o sentimental" e "O castelo branco", mas deixei passar vários outros livros dele, como "Negro", "Istambul", "O museu da inocência". Recentemente foi lançado esse "Uma sensação estranha". Talvez em função das notícias sobre os desastres da guerra da Síria e do papel dos turcos no conflito achei que era hora de voltar ao Pamuk. Trata-se de um romance longo, de quase 600 páginas, e que percorre um período de tempo também extenso, mais de quarenta anos, de 1969 a 2012. O protagonista é Mevlut, um sujeito industrioso, que experimentará várias atividades e ofícios, mas que se identificará sempre como um zeloso vendedor ambulante de boza, uma bebida popular, à base de cereais, açúcar e água, levemente alcoólica. Pamuk conta o trivial da vida deste sujeito, desde a juventude em uma aldeia, a imigração para a capital Istambul com seu pai, os conflitos familiares, serviço militar, seu casamento, nascimento dos filhos, viuvez ainda antes da maturidade, o nascimento dos netos e a velhice. Mas o que realmente surpreende no livro são os relatos sobre a complexidade da Turquia, sua ocidentalização abrupta, o choque do velho e do novo da sociedade turca, as regras de conduta de seu povo (no casamento, nas questões de honra, nos negócios, na política) e sua práticas morais e tradicionais (a violência e o machismo, mas também a musicalidade e o senso religioso). Em muitos momentos lembramos do Brasil, do quão labiríntico e complicado é um país, qualquer país, seja os "em eterno desenvolvimento", como Turquia e Brasil, seja um país rico ou com menor grau de desigualdade social. Racionalizações sociológicas à parte, no fundo o livro trata de uma história de amor, é um longo poema de amor a vida, de como um pecado original condiciona os destinos de um grupo de pessoas. Em "Uma sensação estranha" a fusão dos registros históricos dos últimos anos da Turquia à narrativa é notável. A inventividade de Pamuk na condução das vozes narrativas é sempre uma alegria de se ler. O sujeito parece tornar fácil uma delicada carpintaria literária. Bom livro. Vale. 
[início: 25/04/2017 - fim: 06/05/2017]
"Uma sensação estranha", Orhan Pamuk, tradução de Luciano Vieira Machado, São Paulo: editora Schwarcz (Grupo Companhia das Letras), 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 589 págs., ISBN: 978-85-359-2869-3 [edição original: Kafamda Bir Tuhaflik (Istanbul: Yapi Kredi Yayinlari) 2015]

Nenhum comentário: